Adriano de León[1]
No dia 30 de outubro de 2022 estávamos em pleno segundo turno das tensas eleições para presidente da república. A tensão era instrumentalizada pelo então presidente Jair Bolsonaro, com suas teses golpistas sobre os resultados das urnas eletrônicas e suas possíveis falhas. Ao lado dele, uma legião de pessoas, quase um terço da população de votantes, inebriados com seus gestos e promessas, uma multidão sem filtros críticos, sem registros sobre a história do país, quase desmemoriados e se comportando como uma turba anencéfala.
No dia 1º de novembro, esta mesma multidão se espalhou em protestos pelo país, contrariada pelo resultado da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva. Depois das eleições,começam as ocupações em frente aos quartéis do Exército Brasileiro nas capitais e grandes cidades do país.
Em João Pessoa, Paraíba, não foi diferente. Diante deste fato, resolvi fazer uma etnografia rápida, a partir de visitas ao Comando do 1° Grupamento de Engenharia (Grupamento General Lyra Tavares) na avenida Epitácio Pessoa. Como em outros lugares do país, lá se concentravam pessoas pela manhã e à noite para reivindicar ao exército uma intervenção no resultado das eleições, ou seja, um golpe militar. Todos usavam roupas verde e amarelo e empunhavam, na sua maioria, bandeiras do Brasil. Alguns a vestiam como capas. Havia um guindaste com uma enorme bandeira nacional.
A avenida Epitácio Pessoa é a principal avenida que escoa o trânsito centro-praias e vice-versa. Os manifestantes ocupavam ambos os lados da avenida. No sentido centro-praia havia um QG com a infraestrutura para o funcionamento do movimento com comida, panfletos, água, informações. Minhas idas começaram pelo turno da manhã, no quente verão da capital. Havia poucas pessoas. Dirigi-me a uma barraca de comidas e água e comecei a falar com algumas pessoas. Neste dia, a maioria das pessoas que lá estavam não pareciam saber muito o que estavam fazendo. Na minha percepção, elas estavam sendo pagas por algum grupo, mas esta informação não me chegou. Ofereceram-me água e uma salada de frutas e eu comecei a reparar nos olhares de alguns senhores que organizavam um material de divulgação por lá. Nas minhas primeiras investidas, eles foram reticentes e me perguntavam quem eu era. Respondi que era professor e queria pesquisar os motivos que os levavam a estar naquela manifestação.
“Somos patriotas e queremos lutar por um Brasil livre, isso é demais?”, “Não queremos um corrupto na presidência”, “Nosso líder vai mostrar quem é que manda neste país”, “O exército está preparado pela uma solução rápida.”
Confesso que esta etnografia já estava com as horas marcadas para seu fim, pois todas as memórias contadas e lidas por mim sobre os Golpe de 1964 e suas atrocidades me lembravam do medo e da obscuridade de um período no qual tudo era medo e exílio. Mas segui assim mesmo.
Voltei à noite. Havia muito mais gente. As pessoas da noite já sabiam quem eu era. Isto me causou certo espanto, mas ninguém me tratou mal, a não ser uma servidora da Universidade Federal da Paraíba que, ao saber que eu era professor da área das Ciências Sociais, me insultou de “lulista infiltrado”. As minhas observações e entrevistas duraram 6 dias e mais uma volta quando o movimento já se esvaziou depois da diplomação do presidente eleito Lula.
A primeira entrevista mais longa me foi concedida pelo capitão Andrade[2] (65 anos), todo vestido de verde e amarelo, portando uma bandeira a qual ele estendia para os automóveis que por ali passavam. Seguem trechos:
“Meu filho, aqui se trata de pátria, de família, de Deus. Foi Deus quem enviou este homem para nos salvar (referindo-se à Bolsonaro). A gente tava solto, sem ninguém. Ele veio unificar tudo, veio trazer ordem.”
Perguntei onde ele estava na quele momento (Bolsonaro havia abandonado os manifestantes a esta altura dos acontecimentos):
“É tudo pensado pelo Alto Comando. A gente sabe de tudo, mas não pode dizer nada. Estratégia de guerra, sabe? Esses comunistas pensam que ganharam, mas nosso exército está se preparando para o ataque final, para a grande vitória! Menino, não acredite nesta mídia. O que está saindo nas tvs são filmagens antigas (a diplomação de Lula e sua visita ao Supremo Tribunal Federal). A gente sabe de tudo. Este país estava uma bagunça com esta esquerda comunista. O presidente veio botar ordem e nos guiar para um futuro de ser uma potência mundial. Um homem que combateu as máfias, um Davi contra os gigantes. Cadê corrupção, cadê a bandidagem? Ele limpou tudo…”
As pessoas que vi e entrevistei, na sua maioria eram da faixa etária acima dos 40 anos. Muitos idosos. Ao falar com a senhora Dulce (65), ouvi a seguinte história:
“O melhor tempo deste país foi durante a revolução de 64. Eu ficava sentada com minhas amigas e não tinha este negócio de bandido roubando por aí, não. Os comunistas foram presos e os que não foram, o governo militar expulsou. Fez uma limpeza. O que se via pelas ruas era a ordem e um governo de mão de ferro. Cada macaco no seu galho sem este povinho querendo ser o que não é. As empregadas obedeciam e eram parte da família. Por isso estou aqui: para recuperar a ordem e os valores cristãos da família tradicional que se acabou nestes governos de esquerda. Esta eleição foi roubada e quem ganhou foi o presidente Bolsonaro, o maior presidente deste país. Não é à toa que é do exército, né?”
O que mais me impressionou, entretanto, foi ver colegas da UFPB nestas manifestações. Professores do setor público, massacrados pelo governo de Jair Bolsonaro, vestidos com bandeiras, sentados em cadeiras de praia. Não quiseram me dar entrevistas. No lado da avenida sentido praia-centro, onde se localiza o Grupamento de Engenharia do Exército Brasileiro, havia um ritual messiânico: as pessoas paravam de dizer palavras de ordem e se prostavam nos muros do prédio em oração, muito parecido com o Muro das Lamentações em Jerusalém.
Para retratar melhor estes fatos, sugiro que assistam a um documentário da Fórum Filmes, dirigido pelo jornalista Luiz Carlos Azenha, 2023: https://youtu.be/QLPo5K2xzc4
Aos 9 dias de janeiro de 2023, após uma ação terrorista ocorrida nos prédios públicos de Brasília, os acampamentos foram enfim desocupados.
Sigmund Freud em Psicologia das massas e análise do eu, postula que os grupos acabam por desempenhar um papel integrador para o sujeito, na medida em que o investimento de energia psíquica destinado a objetos externos
é direcionado às próprias relações de grupo, reforçando os investimentos narcísicos. Exemplifico: as cores verde e amarelo aparecem como elo entre os manifestantes. Como eu ia com uma roupa diferente, a minha presença já era um sinal do estranho. Mas mesmo um estranho é capaz de proporcionar esta integração, uma vez que se cria uma linha entre estabelecidos e outsiders, como bem descreveu N. Elias na sua etnografia numa cidadezinha inglesa no final dos anos 1950.
Na maioria das falas, havia a memória de um trauma que, de alguma maneira, decapitou a figura do líder, transformando o mundo num caos. No caso deste grupo analisado, havia um afeto que os unificava: o ódio. Um ódio alienado, uma vez que quando eu perguntava sobre esta raiva, as palavras soavam embotadas.
“O que eu tenho é muita raiva, ódio mesmo destes petistas. Eles acabaram com a nação, desorganizaram tudo como ratos quando invadem uma casa à noite para roubarem comida e contaminar as pessoas”, me falou o senhor Rogério (48).
Era uma espécie de ódio identificatório. Como se o desconhecimento do outro fosse compensado pela identificação com os mesmos sentimentos de ódio e rancor.
Outras emoções que sempre apareciam nos relatos eram o medo e o desamparo.
“Eu tenho muito medo do que possa acontecer a este país se o comunismo vencer”, me diz Rômulo (32) e também Rosa (53): “Eu me sinto sem chão. Meu sonho está desabando, pois meu líder sofreu uma tremenda injustiça. Me apavoro todos os dias com a sensação que o comunismo vai nos destruir, nossos valores, nossas igrejas, nossas tradições.”
Os relatos de medo e desamparo eram recorrentes nas falas. Funcionavam como fatores de coesão social e talvez como molas de impulso daquele tipo de manifestação. Pairava no grupo uma esfera de pânico social que vinha deste outro invasor e desagregador de valores muito rígidos. Havia mesmo um certo desespero e muitas vezes um choro longo em relação ao desamparo, como no relato de dona Sônia (73):
“Eu vou perder tudo e ficar sozinha de novo. Onde está meu capitão a esta hora? Estou aflita porque ele não diz nada. A minha sensação é de abandono que se parece muito com a que eu vivi quando meus filhos me abandonaram para viver com o pai deles (chora).”
Para aplacar estes medos, a figura de um messias é evocada. Jair Messias Bolsonaro, o homem predestinado a salvar o país da bancarrota moral que culminou com a saída da presidente Dilma Rousseff em 2016, num processo golpista midiático parlamentar.
Nos processos melancólicos, como os que ouvi nos relatos, há uma reviravolta da tristeza para um eu autoritário, acusador e sádico, por um lado, e um esmagamento de si mesmo assombrado por uma presença enigmática de um outro que se procura nomear o tempo todo. O sentimento de abandono deposita no indivíduo uma culpa que o deixa de alguma forma inerte perante a vida. Daí a espera de um salvador. Alguém, em algum momento abandonou estes indivíduos que expressam seu ódio em figuras externas como a esquerda. Um traço comum que notei nas entrevistas era uma raiva de ter sido abandonado, de algo que se perdeu.
“Fico puto com estas cotas, esta coisa de lgbt sei lá o que, tendo mais direitos do que gente direita. Agora pra se estudar numa [universidade] federal tem que ser negro, índio, né? Nem precisa estudar mais. Parece uma bagunça geral onde se pode fazer tudo, com bandidos nas ruas, falta de segurança e de lei. Tem que restabelecer a ordem normal da vida” foi a fala de Marlon (55).
Esta falta, observada pelos entrevistados, se enevoa na perspectiva de que o mundo precisa sair do caos para a ordem. E isto só pode ser feito a partir da figura de um líder máximo, ou seja, de um pai. Foi assim com Getúlio, o pai dos pobres, com os militares, os pais da ordem, com Fernando Henrique Cardoso, o pai do real, com Lula, o pai dos famintos, com Bolsonaro, a volta do pai da ordem. Mas não com Dilma, uma mulher que nem foi mãe e nem tampouco pai.
Há muito a Psicanálise vem se ocupando de teorizar sobre a vazio da função paterna em tempos atuais. Este esvaziamento é a marca registrada da crise que aponta para o já falado mal-estar na cultura, no texto seminal de Freud. Segundo J. Birman, este desamparo na subjetividade poderia ser ilusoriamente sanado com a volta de um pai protetor e que reestabelecesse a ordem. Nos relatos, havia uma nostalgia desta figura paterna que poderia conter o desamparo dito nas entrelinhas das falas.
Uma das minhas questões era sobre o tom antidemocrático das falas, em gente que, na sua maioria, viveu o período de abertura e democracia no país. O que conduzia a estas pessoas a uma memória que nem eles tinham vivido, ou seja, a memória da ditadura? Bem, a presença deste pai soberano, forte e viril dos relatos, ao mesmo tempo amado e temido, fez com que eles renunciassem as suas próprias decisões como sujeitos soberanos para depositar nesta figura emblemática a total confiança e guiança de suas vidas. O que me falavam, assim, é de um pai protetor que seria capaz de dar conta de ameaças a seus entes queridos, seus filhos. São os discursos sobre pátria e família:
“A pátria foi vilipendiada por um bando de abutres. Quase um apocalipse. O presidente Bolsonaro representa a volta à normalidade, à moralidade também. Ele reconduziu o país aos seus trilhos do progresso. Acusam ele de truculento, mas para conter a bagunça, um professor tem que impor sua ordem, né professor?” retrucou o senhor Afonso (62)
quando perguntei sobre o uso da força no governo Bolsonaro.
O discurso que se vislumbrava já em 2016, com efeito maior em 2018 era a aflição de boa parte da população desamparada da proteção de um protetor. Grande parte das mídias tratou de infantilizar o eleitor para que ele buscasse a figura do pai perdido. O pai dos famintos estava preso. Havia no cenário de 2018 o economista com uma linguagem extremamente técnica, Ciro Gomes, que não se encaixou na figura do pai. Em paralelo, um professor complacente em meio ao negacionismo do conhecimento já em pleno vapor, Fernando Haddad. Na outra ponta, um personagem quase caricato do chamado baixo clero do parlamento, Jair Bolsonaro, que assume o chicote como forma de pôr ordem no caos, através dos seus rituais armamentistas, que simbolizavam força, poder e limpeza.
“Ele era o que precisávamos naquele momento: um homem de Deus, um homem de bem, da família, capaz de restituir nossos maiores valores cristãos e manter esta ordem, nem que fosse na base da bala!”
reflete o senhor Augusto (71) quando eu perguntei sobre ser cristão e portar armas.
Bolsonaro foi capaz, naquele momento, de fazer a gestão social dos medos urbanos, a partir da circulação de discursos imagéticos de adaptação não às normas constitucionais, mas as normas divinas e sagradas.
Este homem de bem, longe de ser um liberal, acenava para o fascismo como modo de experienciar a política, esta tragada pela corrupção. Coaduna-se a uma figura de fundo, presente também na curta era Temer: o empreendedor. Não importa se motorista de aplicativo, se vendedor de sorvete na praia: eis aqui eu que me fiz sozinho no meu negócio, a partir da minha luta e dos meus próprios méritos. O caldeirão dos mitos estava completo: medo, apelo a um tradicionalismo, messianismo político, individualismo e busca de um pai.
A forma de lidar com o outro nos relatos coletados era a paranoia:
“A gente tem informação que os chineses estão com barcos aqui em Cabedelo. Muita gente viu barcos lá com bandeira da China. Prontos para nos atacar num golpe comunista. Por isso a gente tem que se armar, pra combater os bandidos e os esquerdistas. Se eu fosse você, professor, tinha cuidado com isso, porque a UFPB está cheia de comunas. Se este bandido [Lula] assumir o poder, em dois meses este país já era. Vai ser o caos de inflação, das pessoas roubando as terras alheias, as casas e até os carros. Na China é assim…”
me disse com ênfase o senhor Augusto (71) quando perguntado sobre o que ele temia.
Este outro desconhecido seria um invasor em potencial, como afirma V. Safatle ao se reportar aos afetos políticos. É um discurso paradoxal: de um lado um apelo às liberdades; de outro o controle político de manifestações sociais contrárias ao governo. Tudo vira paranoia, desde o conhecimento até o convívio entre vizinhos. O afeto capaz de unificar e aplacar as diferenças é o ódio, afeto socialmente criado, moldado para justificar intervenções políticas antidemocráticas. Algo parecido ao que C. Melman conceitua de paranoia da vida cotidiana, que consiste numa certeza que tem o sujeito de conhecer a verdade absoluta.
Neste esteio, há uma produção social dos inimigos da pátria:
“O combate aos inimigos da pátria é o que nos move, meu rapaz. A manutenção da família como valor máximo, a retirada da escola desta estupidez de gênero, a presença do homem e da mulher como Deus criou, a honra, o cristianismo e a bandeira nacional como a única ideologia possível. Quem não quiser que saia do país, como muitos fizeram no governo Bolsonaro”,
foram as palavras de dona Marta (58) ao se reportar ao perigo que assolava a nação.
O ódio surge como ponte para o objeto de desejo perdido. Ao mesmo tempo que o ódio revela a estrutura ausente do desejo, ele é capaz de refundar a sociedade através da eliminação de objetos indesejáveis, no caso em tela, sujeitos indesejáveis. Para limpar a Alemanha das desgraças econômicas, Hitler elege os judeus como causa e objeto do ódio, permitindo com que eles fossem eliminados sem uma indignação social. Assim, as crises inventam sujeitos abjetos, cujas vidas devem ser ceifadas em nome do “bem comum”. O ódio visa aplacar a frustação da separação que causou angústia e medo.
Embora nas falas isto não esteja presente, é na leitura das entrelinhas e do comportamento do grupo que este fenômeno fica evidente. O discurso que soa patético e paranoico traz um conjunto de verdades para aquele grupo. São pessoas que foram esquecidas pela família, que pensam ter sido subtraídas em seus desejos pelos “comunistas”, pessoas que odeiam o saber científico e acadêmico, pessoas que na sua maioria ninguém nunca havia parado para escutar seus anseios. Então, “fala que eu te escuto” e outros jargões do meio evangélico recuperaram esta subjetividade anônima, perdida e desamparada. Há um deus que ouve. Há um pastor que guia. Há um presidente que manda. Atos racistas e homofóbicos, atos misóginos e antivacinas, antes combatidos socialmente, foram, no período Bolsonaro, cultuados como atos espontâneos, da expressão da liberdade de falar e da busca pela justiça meritocrática. Como me falou dona Cândida (67):
“Agora ninguém pode falar mais nada. Tudo vira racismo, esta coisa contra os homossexuais, esta besteirada feminista. Somos um país misturado e nunca vi racismo aqui. Criei meus filhos no cristianismo e todos são casados, graças a deus. Tem até uma lésbica na minha família, mas ela fica muito bem comportada nos cantos e ninguém nem percebe o que ela é.”
A lógica do sacrifício percorre o imaginário do grupo etnografado. Bolsonaro é visto como quase um cordeiro que ia sendo sacrificado pela nação. Deixou tudo para cuidar de seu povo, como um capitão em seu cavalo branco atacando as legiões dos corruptos. A República Bolsonarista se transformou num gabinete da fé. Tudo era messiânico: atos, falas, atuações, lives. O povo e o líder como um só organismo vivo e simbiótico, mantido vivo pelas redes sociais, pelas notícias falsas e negação da política como ato de fé.
No entanto, não dá para entendermos este grupo sem um olhar sobre o evento fascista que dominou o país por cerca de 4 anos. As falas, embora educadas, eram cheias do discurso fascista, deste ódio ao diferente e à diferença. G. Deleuze e F. Guattari, tanto no Anti-Édipo quanto em outros trabalhos explicaram como as massas desejaram o fascismo após uma crise do sistema. Este desejo passa por uma perversão das atitudes e um sacrifício das suas próprias vidas em nome de um líder.
Quando eu perguntava por que estavam ali e quem os financiava, as respostas convergiam para um mesmo tema:
“Ninguém banca a gente aqui não. Estamos aqui para servir a pátria e ao nosso líder Jair Bolsonaro”, segundo Augusto (71), acostado à Dulce (65) que me falou “A gente só sai daqui se for preso. Tudo para garantir inclusive sua liberdade, tá vendo moço?”
O simbolismo que arrodeia tais falas são o pai, o líder, o patrão. Na verdade, são todos representantes do pai, do que executa, intervém, ou seja, a Lei. Neste devir, o fascismo entra como movimento desejante do aniquilamento do próprio desejo, ou como preferem os autores, um desejo suicida. O fascismo traz esta falsa esperança mítica de renascimento, mas para tal, desviando-se do potencial criativo dos sujeitos. O sujeito é desassujeitado de si: não elabora, não pensa, não reflete, só reproduz, na lógica das tropas dos exércitos.
O fascismo é conservador, no sentido de dar às forças reativas do ressentimento o seu primado. Neste sentido, o ressentimento pode ser considerado o afeto central do fascismo.
Segundo Umberto Eco, as características típicas do “Ur-Fascismo” ou “fascismo eterno” não se enquadram num sistema, “…mas basta com que uma delas esteja presente para fazer coagular uma nebulosa fascista” (em tradução livre). Vale aqui apenas alguns dos indícios do eterno fascismo que Eco aponta:
Culto da tradição – como se toda a verdade já estivesse revelada há muito tempo e o que precisamos é ser fiéis a ela. O tradicionalismo é uma espécie de cartilha na disputa de hegemonia fascista sobre corações e mentes. O pensamento do principal guru dos “donos do poder”, a pregação das igrejas pentecostais e as falas – quando dizem algo – são impregnados de uma veneração da verdade já revelada em escritos sagrados e de valores espirituais mais tradicionais do cristianismo. “Deus, pátria, família e propriedade”, com a força que estão de volta como pregação, não deixam dúvida. Fascismo e fundamentalismo sempre vêm juntos.
Repulsa à Modernidade – que leva a considerar as conquistas humanas em termos de direitos e de emancipação social como perversidades da ordem natural. Nega-se, em consequência, a racionalidade e, com ela, toda a ciência e a tecnologia. Não falta gente com tal forma de pensar no governo e seus seguidores. Para eles, direitos iguais são um absurdo. Mudança climática é uma “invenção de comunistas”.
Culto da ação pela ação – fazer e agir, acima de tudo. Como diz Eco, para fascistas “pensar é uma forma de castração”. Daí a atitude de suspeita à cultura, pois é vista como algo crítico. Em consequência, todo mundo intelectual é suspeito. Ainda Eco, “O maior empenho dos intelectuais fascistas oficiais consistia em acusar a cultura moderna e a intelligentsia liberal de ter abandonado os valores tradicionais”.
Não aceitação do pensamento crítico – pensar criticamente é fazer distinções e isto é sinal de modernidade, pois o desacordo é base do avanço do conhecimento científico. O fascismo considera a divergência como traição. Deve-se aceitar a verdade da ordem estabelecida. Daí, “escola sem partido”, sem iniciação ao pensamento crítico e a liberdade de expressão e ação.
O racismo na essência – segundo Eco, com medo da diferença, o fascismo a explora e potencializa em nome da busca e da imposição do consenso. Os e as diferentes não são bem-vindos. Por isso, o fascismo é essencialmente racista e xenofóbico. Daí a identificar os diferentes como criminosos a linha é reta.
O apelo aos precarizados e frustrados – todos os fascismos históricos fizeram apelo aos grupos sociais que sofrem frustração e se sentem desleixados pela política. As mudanças no mundo do trabalho, promovidas pela globalização econômica e financeira, são terreno fértil para o fascismo.
O nacionalismo como identidade social – nação como lugar de origem, com os seus símbolos. Os e as que não se identificam com isso são inimigos da nação. Portanto, devem ser excluídos. Podem ser os nascidos fora da nação, como os imigrantes, ou por se articularem com forças externas – o tal “comunismo internacional” – ou, ainda, por não se enquadrarem no padrão “normal” de nacionalidade. O nacionalismo vulgar é o cimento agregador de qualquer fascismo.
A vida como guerra permanente – no fascismo, a gente não luta pela vida, liberdade, bem viver, mas vive para lutar. A violência é aceita como regra e a busca de paz uma balela. Vencem os mais fortes, armados. Há um culto pela morte na luta.
O heroísmo como norma – o herói, um ser excepcional, sem medo da morte, está em todas as mitologias. Há sempre pessoas e grupos tentando matar o líder. Uma vez vítima de atentado, o herói vira mito real.
O machismo como espécie de virtude – em sendo difícil a guerra permanente e a demonstração de heroísmo, o fascismo potencializa as relações de poder na questão sexual, segundo Umberto Eco. Aqui também não faltam manifestações de patriarcalismo e machismo, com intolerância com o que é considerado divergente da norma em questões sexuais. Não há lugar para a liberdade de opção sexual e de gênero.
O líder se apresenta como intérprete único da vontade comum – o povo é o seu povo, o seu entendimento do que seja o povo e sua vontade comum. Como diz Eco, estamos diante de um populismo de ficção.
Um dos recursos é justamente a criação de “inimigos” imaginários, utilizando como recurso acusação e julgamento. Transformando-se em um juiz, um inquisidor moderno, o fascista se coloca em uma posição de superioridade em relação ao outro. Isto dito, como vamos conversar com o fascista? Coisa difícil, uma vez que o fascista precisa ser confrontado com aquilo que ele mais teme: o outro.
Como nos lembra M. Tiburi, a questão do autoritarismo perturba a todos aqueles que tem um senso de respeito ao outro e de responsabilidade com a sociedade democrática e os direitos fundamentais. O fascismo é o ódio ao outro – nas variadas formas de negação, repressão, recalque, esquecimento, preconceito, agressão, violência simbólica e física – transformado em norma política.
O ódio é uma produção social. Apesar de ser uma das nossas emoções nativas, ele é instrumentalizado em determinadas épocas com o fim de justificar atitudes fascistas. Ele cessa o diálogo e promove o dissenso.
Ao contrário do ódio, o diálogo é uma atividade que nos forma e que é formada por nós. É um ato linguístico complexo capaz de promover ações de transformação em diversos níveis. Poderíamos nos perguntar o que acontece conosco quando entramos em um diálogo e o que acontece caso isso não seja possível. O diálogo é uma prática de não violência. A violência surge quando o diálogo não entra em cena.
Como personalidade autoritária, a fascista luta contra o amor e as formas de prazer em geral. Um fascista não abraça. Ele não recebe. É um sacerdote que pratica o autoritarismo como crença e usa falas prontas e apressadas que sempre convergem para o extermínio do outro, seja o outro quem for.
A operação de pensamento autoritária está profundamente arraigada em tudo o que fazemos e parece fortalecer-se em certas épocas. Essa operação se dá no apagamento da função de alteridade (a função do outro). A operação do pensamento autoritário é infértil e rígida, ela se basta em repetir o que está dado, pronto ou resolvido, mesmo que apenas aparentemente. O outro (seja o povo, seja o próximo, seja a cultura alheia, seja a natureza ou a sociedade, seja o outro como uma “voz” que não se quer ouvir) é apagado no processo mental, que é um processo de linguagem. Nesse processo, aquele que se constituiu como “sujeito autoritário” pensa a partir de falas prontas que ele toma como suas, mas que são introjetadas. O sujeito autoritário, como teoriza T. Adorno, tem orgulho de seus pensamentos como se fossem verdades teológicas que somente ele detém. O grupo pesquisado me mostrou isto.
Ora, sabemos que os afetos são sempre aprendidos. Eles se formam em nós por experiências. O fascista é impotente para o amor porque viveu experiências de ódio. Ele introjetou o ódio muito antes de poder pensar nele. Sempre pensamos o que pensamos motivados por elementos afetivos. Todos os pensamentos de quem sistematicamente odeia como o fascista têm como fundamento as potências violentas do ódio.
Eis que tudo se desfez. Na minha última visita, o acampamento dos golpistas do Grupamento de Engenharia contava com uns 8 gatos pingados numa roda de conversa ou entre um jogo de damas. Desta vez se recusaram a falar comigo. Recusaram-se a ver este outro, este outro do outro lado da história, do lado da esperança, da boa ciência e dos saberes libertários e libertadores.
Para escrever tal ensaio, me inspirei nos seguintes textos:
Teodor ADORNO. A personalidade autoritária.
Joel BIRMAN. Arquivos do mal-estar e da resistência.
Gilles DELEUZE e Felix GUATTARI. O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia.
Christian Ingo DUNKER, Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros.
Umberto ECO. O fascismo eterno.
Michel FOUCAULT. O Nascimento da biopolítica: curso no Collège de France 1978-1979.
Sigmund FREUD. O mal-estar da civilização.
Sigmund FREUD. Psicologia de Grupo e a análise do eu.
J. LACAN. Escritos.
Charles MELMAN. Como alguém se torna paranóico: de Schreber a nossos dias.
Maria Cristina OCARIZ. As contribuições da psicanálise diante dos efeitos da violência social do livro Psicanálise e violência social.
Wilhelm REICH. A Psicologia de massa do fascismo.
Vladimir SAFATLE. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo
Márcia TIBURI. Como conversar com um fascista.
[1] Este é um texto livre. Pode ser copiado sem a mínima necessidade de me citar.
[2] Todos os nomes são fictícios. Todas as fotos são de domínio público da internet.