Luziana Ramalho[1]
- CENA I: ESTILHAÇOS DA RAZÃO
NARRADORA- É manhã de sol alto, brisa leve e o campo se mostra borbulhando vida na fauna e na flora. Os animais humanos se deliciam pela possibilidade de sentirem desejo e sem grandes conflitos, a não ser, como suspender a vestimenta e onde encontrar um bom repouso possam extravasar o misto de malemolência e frissons que os tomam como um sintoma de um estado febril fleumático. Essa “peste” da pulsão de vida e busca do prazer acomete, aproxima e quiçá nivela os diferentes segmentos daquela bucólica sociedade rural.
OS DOMADORES DOS INSTINTOS ALHEIOS- Assim não é possível! Vejam o perdem satisfazendo os comandos do corpo/desejo.
Os perigos advindos da descoberta do corpo carne, as consequências nefastas à ordem pela profusão do conhecimento, especialmente da potência do desejo/satisfação, têm cada dia mais afastado esses hereges das “verdades fundamentais” e das ações retas. Fomos relapsos e brandos ao desmerecer a força da queda primária no Jardim do Éden, são chegados os tempos e, inadiáveis as medidas que teremos de tomar para arrefecer e impedir essa tresloucada busca, descoberta e autodescoberta do prazer.
Prazer é pecado, sendo a única forma admitida/permitida, aquela dos estóicos pela dor e autoflagelação. Prazer? Só se encontra na negação e mortificação de si. Abdicar, perjurar e perseguir, eliminar eis o corolário do prazer.
NARRADORA- A seleção do maior dos perigos, foi realizada num estudo meticuloso, no qual o método era partir de um de retro, mas sem medo de virar estátua de sal (pois a priori, os dominadores dos instintos eram essencialmente ungidos pela graça da imunidade à maldições, inclusive àquelas dos pergaminhos sagrados), realizar uma visada ao passado e extrair dali a pedagogia para adestrar o animal humano e os desejos do tempo presente. Assim encontraram em diferentes mitos fundantes um elo comum e imanente, ou seja, a recorrência de um corpo tido como inferior, frio, sem conteúdo, mas com muitas e bem definidas formas. Um corpo que morfofisiologicamente era um atentado contínuo ao pudor e à razão. Esse corpo seduziu o Homo Primus. Um corpo que pressentiu a possibilidade de conhecer além dos limites das grades curriculares impostas pelo mestre. Ei-las constituídas no campo do desvio primário, eis a mulher. Assim nasce o anátema do viver pelo suor da ação, o trabalho como castigo ao homem por sua ingenuidade em ceder à perfídia feminina. As dores todas e sempre no corpo da mulher e dos seus descendentes, para todo sempre.
- CENA II: O ECLIPSE DE SABBATS E FOGUEIRAS
NARRADORA- Fora confeccionado no século 15 um compêndio “seriamente” comprometido com a narrativa da verdade clerical e com procedimentos metodológicos “assépticos” que repetidamente cita os doutos da moral. Um fato curioso é que este corolário da anamnese do demoníaco começa enfatizado a necessidade da existência da tríade, diabo-bruxa-consenso divino. Assim mais uma vez temos a fêmea, a tentação e o divino, que em sendo divino tem por óbvio o conhecimento prévio/premonitivo do devir. A questão contraditória aqui é refletir, tendo o divino a sapiência cósmica porque permite, socializa com o diabo o uso da vontade de potência? E, mais chocoso ainda, como produziu uma espécime secundária que desde o mito fundante do Éden apresentou disfunções no campo ético? O desvio da mulher pelo viés da clarividência, premonição, telepatia, curiosidade, insaciedade, capacidade curativa com ervas ou discursos, é um erro ou, uma anomia à harmonia?
DAS FALAS DAS ENDEMONIADAS- Te liberto de todo mal de quebranto, inveja e lascívia em ti derramadas. Te curo dos males advindos da tua frágil capacidade de te olhar, permitir e ousar ser feliz. Te fortaleço a compreender que vida para nós vai ser sempre prenhe de limitações mas que enxergar teu corpo-carne e ter consciência das pulsações e pulsões pelo prazer devem ser mais fortes e presentes do que o teu medo-repulsa e automutilação. Eu te ensino que o reconhecimento de que todas nós somos partes de uma toda e indivisível e, quanto mais viveres compreenderás indizível forma-vida, isso a que chamam mulher, assim uma cosmovisão do ser mulher é urgente. Eu te prescrevo o exercício ininterrupto da compaixão primeiramente por todas nós e, em consequência por todas as demais formas-vida. Eu te alerto que não raro, teu maior algoz será a outra e, não o outro. Cuidado, mas não te prives de seres sonhadora, resiliente e acima de tudo estares aberta a acolher tua semelhante. Não temas nenhuma outra, mesmo aquelas com cabeças cheias de víboras, as víboras podem ser acalmadas pelo teu canto e dança. Enfim, não te diminuas, não te amedrontes e nem fujas aos laços e ardis da forma-vida homem, reparte com eles desde a sua tenra infância todos os ensinamentos a ti antes destinados. Ama e ama cada vez mais, ama até o teu “eu/essência” ficar a explodir. Ama chorando, ama te recosturando, ama te despedaçando, ama e ama cada vez mais a tudo e todos, ama a ti fenômeno hiperbólico, trajetória disforme, fonte de vida e recomeços…
- CENA III: A APARENTE ASCENSÃO DO FEMININO:
-NARRADORA- É meio dia, a cidade explode em pessoas, veículos de tração animal, comércio em locus fechado e não apenas nos espaços públicos das ruas. A comunicação corre como fluxos de tempestades. As deusas que são cultuadas são a ciência e a revolução.
O conhecimento-libertação é retratado como corpo de mulher. Agora a curiosidade e insaciedade levou a sociedade ao futuro, ao moderno, à “evolução”. Contudo, elas que ontem eram bruxas, agora são classificadas como histéricas e, nessa condição flutuam em variáveis médicas que ora as diagnostica como descontroladas e, por isso mesmo, noutras situações as elegem como símbolo e melhor vetor para as pesquisa nascentes no campo da paranormalidade. Ainda é o trânsito entre desvio e capacidade de transcender que as marca. Suas “aptidões” outrora condenáveis, àquelas advindas do dito sexto sentido (por isso paranormais) se tornam objetos de fetiche da ciência.
AS PITONISAS SEM GARANTIAS OU PRIVILÉGIOS- Ai de mim que vivo nesse palácio e nele não passo de um adorno. Quanta miséria em viver na penúria econômica e moral. Que vida me espera se não conheço nada do presente e, quanto ao futuro o desprezo, assim como ao corpo que habito. Outras gritam- a luta é hoje. Lutemos pelo direito ao trabalho remunerado, ao voto, ao direito de ir e vir, a possibilidade de desejar e ser para além do nosso corpo.
DAS TERAPÊUTICAS ÀS TRANSTORNADAS- Internação em hospícios, banhos frios, banhos quentes, hipnose, vivência dos traumas pela fala, violências sexuais, interdição sexual, prisão, pena de morte, abortamento seletivo no caso de gravidez feminina… Eugenia com viés de ciência, extermínio com pinceladas de estetização da vida. Dor! que só sente realmente àquelas que a todo instante têm sua lida/vida adstrita.
- CENA IV: QUANDO O SOL COMEÇA A SE POR
NARRADORA- Numa tarde de sol escaldante, indivíduos transitam sem maiores referências entre si e, muito menos referentes para si.
São múltiplas as possibilidades de ser-pensar-existir e resistir. Nesse cenário os papéis são fluídos, os desejos são decantados e cantados por trovadores peregrinos. Os protagonistas não precisam mais de um palco nem um script formal, a vida, o corpo, as performances, são as matérias e veículos do drama social. Menos culto à tragédia, mais experimentos idílicos e revival de mitos ancestrais. Bricolagem entre Ocidente e Oriente, jovens ditando-vivendo sua salutar criatividade. A guerra, como símbolo fálico posta em xeque e sexualidade como imanência do feminino passa a ser produzida, vivida, recebida como apologia à criação-coesão. Mantras, sons de contestação, melodias de amor à natureza-eu/nós, amor ao outro/eu, uma sinfonia de primavera perene…
DAS PROFUNDEZAS EMERGE O DIABO- A “peste” começou de forma moderada, aos poucos foi assomando e assumindo uma dimensão global e, de repente explodiu como bomba atômica, pois que de uma explosão primária foi criando efeitos circulares e graduais agindo cada vez mais do epicentro para as margens, e desde cedo o epicentro era a sexualidade dos “transviados”, do pecado, dos crimes, portanto num silogismo simplista, como todos geralmente o são, a todo desvio se deve impor um castigo! A peste logo foi associada à queda secundária, aquela na qual o ser homo primus suprassumo da criação abdica da sua condição per si viril e transtorna-se numa paródia da mulher. Logo a peste é remetida ao ato degenerado dos homens que ao invés de tomar/invadir/possuir se permitem penetrar/receber. Assim, o concerto da orquestra da harmonia e isonomia entre diferentes instrumentos e sensibilidades estéticas se vê premido pela fuga e o forçado retorno ao estilo da tragédia. O fim, o devir será sempre fáustico!
- CENA V: A LONGA NOITE DO PRESENTE OU DA IMPOSSIBILIDADE DE EXISTIR
DIVERSOS ATORES- Sexo, sexualidade e dominação sempre caminharam juntos, abaixo a pretensão da ordem, evolução, civilização, medicalização, robotização, transgênicos, colonização, colonialismo, escravidão, preconceitos, preceitos, solidão/automação…
Outros gritam- fim das regalias dos abjetos, a vida é uma só e as verdades/estruturas que a sustentam são Deus, Pátria e família! (mesmo que o Deus seja multifacetado em porções infinitas e inconciliáveis; que a pátria não receba mais as garantias previstas como um corolário de unidade e segurança de território e, as famílias sejam, inclusive a de muitos domadores dos instintos alheios, uma colcha de retalhos de recomposição em casamentos lícitos e relações extraconjugais, ou não monogâmicas).
Muitos outros, não pensam, não dizem nada… Assistem ou não enxergam, pois a segurança e comodidade de pupilas retraídas lhes trazem um arquétipo de conforto como aquele que sentiam os homens da caverna no mito do senhor da régua evolutiva o pratão que foi servido e ainda o é como a boa ciência para o bem viver (leia-se Platão e seu idealismo/racionalismo).
Uma nova “peste” surgiu, mais abominável do que todas as outras até então taxonomizadas. Essa age simplesmente pela fatal necessidade que o ser vivo, forma-humana, tem para viver, ou seja, respirar.
Agora uns se isolam para preservar a vida.
Outros se suicidam por medo da morte.
Muitos choram por compreenderem a precariedade da vida e o luto que a finitude daqueles que amam deixa
Tantos se revoltam contra a ineficácia, deboche e crimes cometidos pelo monstro que criamos no século 17 que tinha naquele momento como discurso legitimador e justificador, gerir o bem comum, ao contrário e, no Brasil especificamente vemos a aparição da besta apocalíptica travestida de um cão raivoso, que se expande em projeções múltiplas de necropolítica.
Órfãos dos mitos fundantes: deuses, segurança do lar, trabalho como fonte de dignidade/sociabilidade, essa sociedade não dorme apesar de ser noite. É acometida de colapsos nervosos e sacudida por pesadelos que nem o simbolismo junguiano daria conta de metaforizar e devolver como símbolos “pensados”.
FIM DO ESPETÁCULO:
VOZES DISSONANTES E INAPREENSÍVEIS- De tanto tentar ordenar o mundo, a forma vida-humana esqueceu de acariciar a si mesmo e agora na sua inaudível solidão percebe a pequenez da existência pautada no cogito e intuí, que talvez copiando a forma vida-mulher, possa haver uma fuga, quem sabe um encontro possível com a vontade de prazer/ação satisfação do ser agora e, consequentemente um equilíbrio para que exista o por vir.
[1] Professora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFPB. [email protected]