Nádja Silva dos Santos[1]
O ser mulher e o ser homem é algo que vem mudando através do tempo, além de variar consideravelmente de acordo com a sociedade e a cultura em que os indivíduos se inserem. Diante disso, podemos observar o quanto os papéis atribuídos às mulheres e aos homens são atravessados por construtos sociais e pouco ou nada tem de destino biológico ou de natural em tais atribuições. As discussões levantadas por Fabíola Rohden (2003) acerca da construção das diferenças sexuais pelo saber biomédico entre indivíduos considerados machos e fêmeas, homens e mulheres, nos incitam a pensar como natureza e cultura são aspectos que estão em interação constante e se influenciam mutuamente.
Outro ponto importante é pensar como o desenvolvimento da medicina influencia tais distinções entre homens e mulheres. Assim como o desenvolvimento da ciência ao longo da história nos mostra o quanto a construção do conhecimento científico passa, necessariamente, pelos domínios do mundo social e por ele é influenciada. Curiosamente, embora no decorrer da história a classe médica atribua à natureza as distinções entre homens e mulheres, acreditam que a sociedade, através dos processos de socialização pelos quais passamos ao longo da vida, podem interferir e, até mesmo, “atrapalhar” tal diferenciação. Caso fosse de fato exclusivamente natural, não precisaria se converter em uma preocupação tão pungente. Apesar de poder parecer num primeiro momento uma discussão um tanto datada, observo que essas diferenciações entre homens e mulheres ainda se mantém com bastante força na contemporaneidade.
Não à toa quando os limites são “borrados” por casos excepcionais, como é o caso da transexualidade, vemos o quanto a nossa socialização nos direciona para o exercício de papéis sociais muito específicos, enquanto homens e mulheres, e o quanto é difícil transpor as barreiras impostas pelo gênero. Pessoas transsexuais são indivíduos que quebram, em certo sentido, essa divisão entre homens e mulheres, e mostram que existem questões para além do biológico e do social no que tange a construção da identidade dos indivíduos. Passando também pelo âmbito psicológico, haja vista que se caracterizam por não se identificarem com o gênero com o qual foram designadas ao nascer. Por exemplo, pessoas que foram designadas homens ao nascer, mas se identificam com o gênero feminino e vice e versa (BORBA, 2016).
Aqui, não encaro a transexualidade enquanto patologia psicológica, como ainda é considerada por muitos profissionais da área da saúde e pela população em geral. Isso, apesar de ter saído recentemente, em 2018, da lista de doenças psicológicas, portanto, da Classificação Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS). Neste breve ensaio, considero a transexualidade uma das formas diversas de vivenciar o corpo, o sexo e o gênero. E, além disso, um exemplo de como a construção do saber científico se dá através de um processo histórico e social e como a concepção da medicina sobre o que é a “doença” pode mudar ao longo do tempo.
Tal como nos mostra Löwy (1994), resgatando o trabalho de Ludwik Fleck (1896-1961), a construção do conhecimento científico e, em particular, da ciência médica, é perpassada necessariamente pelas mudanças causadas e possibilitadas pelo momento histórico em que estamos vivendo. Assim sendo, Fleck historiciza e dinamiza as condições de emergência dos fatos científicos, o autor percebe a ciência como uma atividade coletiva complexa e que deve ser estudada pelas mais diversas áreas do conhecimento.
Tal como a epistemologia de Fleck, a “nova história” das ciências se funda a partir do estudo das práticas médicas e suas inserções sociais, a partir da historização da categoria “ciência”. Dessa forma, o historiador da ciência deve seguir a construção, a partir dos seus autores, da divisão entre o que é entendido como pertencente ao mundo natural e o que é pertencente ao mundo social. As divisões ciência/técnica e pesquisa básica/aplicada também deveriam ser historicizadas. Além disso, é preciso levar em consideração as condições históricas do surgimento de tais divisões e como estas são utilizadas pelos autores (LÖWY, 1994).
Nesse sentido, não existe nenhum método científico ou ciência uniforme. Segundo Richad Rorty, a ciência natural não é um tipo natural. Ou seja, as práticas científicas são práticas essencialmente locais, estreitamente ligadas aos instrumentos, reagentes, conceitos e técnicas presentes num dado lugar/momento. De maneira que, não existem práticas universais, mas sim práticas locais amplamente difundidas através de redes específicas de trocas e comunicação (FLECK, 1979).
O fundador da Escola Polonesa da Filosofia da Medicina, Tytus Chalubinski, que atuou entre 1860 e 1880 desenvolveu a ideia de que as doenças não são entidades naturais, mas sim construções médicas (FLECK, 1979). Da mesma maneira que a concepção de corpo não consiste em algo natural, que está dado. As próprias diferenciações sexuais entre homens e mulheres estão sujeitas a passar por modificações, a fim de se adequar às necessidades individuais, a exemplo da população trans, como mostra Rohden (2003) e Borba (2016), respectivamente.
É bastante interessante que a diferenciação dos corpos femininos e masculinos atuam enquanto uma forma de controle tanto sobre a “biologia”, portanto, natureza dos corpos, quanto sobre os papéis que cada indivíduo deve assumir na sociedade em que estão inseridos. Desse modo, natureza – aqui compreendida enquanto uma concepção perpassada pelo tempo histórico e por construções socioculturais – e cultura convergem para criar categorias e reafirmar o que significa ser homem e mulher num dado momento, numa dada sociedade. Por conseguinte, as concepções acerca de sexo e gênero refletem também as concepções acerca de natureza e cultura em uma determinada sociedade e estão sujeitas a passarem por processos de modificações.
O fato de os aspectos biológicos e sociais das vidas das pessoas estarem em constante interação, se influenciando mutuamente, segundo Rohden (2003), consistiria em uma das razões pelas quais o social deveria ser observado e controlado, na medida do possível. Isto é, a fim de evitar mudanças radicais no que seria considerado o destino natural dos seres humanos e na finalidade social desejada para cada tipo de indivíduo. O que, a meu ver, equivale a uma estratégia, bastante eficaz, diga-se de passagem, de manter a hierarquia social e econômica entre homens e mulher – assumindo os homens um lugar de dominação em relação às mulheres –, aqui pensando em indivíduos cisgêneros, ou seja, que se identificam com o gênero que foram designados ao nascer.
Desse modo, o controle da socialização e dos principais aspectos da vida social das mulheres cis é um exemplo de como se pretende intervir na vida desses indivíduos, fazendo o possível para que sigam no caminho que as conduzam para o seu “destino natural”, qual seja: reproduzir a espécie e, portanto, a sociedade. Esta era uma crença corrente no século XIX e XX, mas que não deixa de se fazer presente na contemporaneidade. Embora venha assumindo outras formas e não seja, a rigor, impeditivo para que algumas mulheres se realizem enquanto indivíduos. Apesar disso, reproduzir a sociedade segue sendo um peso que recai quase exclusivamente sobre a “fêmea”.
O que mais uma vez reafirma a existência de privilégios masculinos, conquistados às custas da liberdade e do bem-estar das mulheres. Destarte, essas são algumas das características que acredito ter possibilitado o controle estrito dos corpos femininos sob o pretexto de serem as mulheres as (únicas) responsáveis pela reprodução da espécie humana. Uso o passado para me referir ao contexto Ocidental, partindo do pressuposto que neste lado do globo nós mulheres somos minimamente reconhecidas enquanto indivíduos, pelo menos em alguns casos, e que conseguimos assumir outros papéis na sociedade que não o de mães.
Um exemplo de como os corpos femininos ainda são controlados atualmente e certos tipos de mulheres, geralmente mulheres pobres e com pouca instrução, continuam sendo “punidas pelo sacrifício que são obrigadas a fazer (Jaffe, 2014, p.162)”. Sendo, assim, encerradas na categoria de mãe, o caso do Programa Bolsa Família (PBF), que vigora no Brasil desde 2003, é um exemplo disso. Isso significa dizer que, determinados fatos sociais, como aqueles relativos ao PBF apresentado por Nascimento e Lima (2018), que se referem ao controle dos corpos das mulheres, através de exames preventivos e sistemáticos, como o papanicolau, bem como por meio da responsabilização pela qualidade de vida dos seus filhos. Haja vista que precisam estar necessariamente frequentando a escola e com a vacinação em dia para receber a quantia referente ao benefício concedido pelo Estado. Tudo isso serve para reafirmar o papel social pré-determinado da mulher na sociedade atual, que em pleno século XXI segue sendo encarada unicamente como “mãe”.
A esse respeito Beauvoir (2009) trata sobre as questões estritamente biológicas impostas pela natureza ao corpo da mulher. Tomando a gravidez como exemplo, ela demonstra o quanto o processo de gerar uma vida pode ser, de certa forma, nocivo à experiência feminina. Isso porque a gestação além de ser um trabalho cansativo não fornece à mulher nenhuma vantagem individual. Tanto o é que gestar é algo que pode provocar desde enjoos e falta de apetite até o empobrecimento em fósforo, cálcio e ferro no organismo das mulheres. Nesse sentido, se torna evidente que nem sempre o corpo é capaz de satisfazer as necessidades da espécie e dos indivíduos ao mesmo tempo.
Isso demonstra que ao contrário do que o senso comum apregoa, o ser mãe, ainda mais mãe solo, pobre, além de não constituir numa dádiva, uma vez que tanto nos aspectos biológicos quanto nos aspectos sociais a maternidade tende a se revelar uma “atividade” laboral nada benéfica a mulher enquanto indivíduo, também não é o meio mais fácil e efetivo de conseguir o próprio sustento, através do PBF. Pois o objetivo do Programa Bolsa Família é conferir uma renda fixa às pessoas em situação de vulnerabilidade social, a fim de garantir que elas tenham o mínimo de dignidade e acesso à direitos básicos como saúde e educação. Além do que, o valor recebido por essas pessoas é irrisório, não constituindo nem de longe um “salário” garantido para quem é mãe em tempo integral. Sem falar que as mulheres beneficiárias do PBF precisam estar em dia com todas as condicionalidades estabelecidas pelo Estado para receberem o valor que lhes é devido sem nenhum desconto (NASCIMENTO; LIMA, 2018).
Ou seja, o discurso endossado pelo senso comum do dinheiro recebido pelas mães que dependem do PBF para sobreviver enquanto um “dinheiro fácil”, de certa forma, cai por terra. Haja vista que essas mulheres precisam necessariamente cumprir com uma série de obrigações para receber o seu benefício. E ser mãe em tempo integral nem de longe se constitui em uma atividade laboral menor, em relação às demais atividades que, inclusive, bem ou mal são remuneradas ao contrário do trabalho exercido pela figura das mães – que além de não ser pago é imputado como uma obrigação. Muito pelo contrário, o ser mãe, em determinados contextos, especialmente no caso de mulheres pobres, exige desses indivíduos não raro uma série de renúncias pessoais.
Os sentidos que damos ao uso de nossos corpos são perpassados por questões políticas, sociais, econômicas e históricas, talvez e muito provavelmente por outras mais também que não cabem aqui no momento. Uma vez que, nem sempre percebemos o nosso próprio corpo, em especial quando há necessidades mais urgentes como sobreviver e garantir o próprio sustento, também acabamos não notando os sentidos que ele tem e assume ao longo da nossa vida. A despeito dessas questões supracitadas, o corpo é político, afinal, é através dele que experienciamos a vida, criamos a nossa identidade e nos expressamos enquanto indivíduos. Nesse sentido, os exemplos da transexualidade e de como os corpos femininos são controlados nos incitam a refletir sobre os sentidos que são atribuídos aos corpos dos diferentes tipos de pessoas.
Referências bibliográficas
BEAUVOIR, Simone de. Os dados da biologia. In: BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Cap. 1. p. 35-70, 2009.
BORBA, Rodrigo. RECEITA PARA SE TORNAR UM ‘TRANSEXUAL VERDADEIRO’: DISCURSO, INTERAÇÃO E (DES)IDENTIFICAÇÃO NO PROCESSO TRANSEXUALIZADOR. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 55, p. 33-75, 2016.
FLECK, Ludwik. Genesis and Development of a Scientific Fact. University of Chicago Press, 1979.
JAFFE, Noemi. Posfácio. In: WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, p. 161-170, 2014.
LÖWY, Ilana. Ludwik Fleck and the history of science today. História, Ciência, Saúde – Manguinhos. jul-oct, p.7-18, 1994.
NASCIMENTO, Pedro; LIMA, Marcia Alexandrino. “O Bolsa Família tem ajudado muito a gente”: usos das condicionalidades em saúde no Programa Bolsa Família. In: NEVES, Ednalva Maciel; LONGHI, Marcia Reis; FRANCH, Mónica. Antropologia da Saúde: Ensaios em políticas da vida e cidadania. João Pessoa: Mídia Gráfica e Editora, Cap. 5. p. 117-155, 2018.
ROHDEN, F. A construção da Diferença Sexual na Medicina. Cadernos de Saúde Pública (FIOCRUZ), Rio de Janeiro, v. 19, n.S2, p. 201-212. 2003.
[1] Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Aluna especial do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPB (PPGS/UFPB). E-mail: [email protected]