“Bururu” pra ele; “inha” pra ela e Yuri para o Vale: queerificando memórias e compondo reminiscências

Ilrismar Oliveira dos Santos [1]

RESUMO

Este texto tem o objetivo de narrar, em brevidades, a minha história de criança-viada-queer (não sei se essa categoria poderia ser assim descrita, mas acredito que intensificar a viada por meio do queer reforça o que quero de mim e do leitor). Neste trabalho, vocês encontrarão minhas vivências, ou seja, a história de um garoto do interior da Bahia que na infância se inspirava em saltos, batons, vestidos, bonecas e muita coreografia da Xuxa. Como adulto, tornou-se professor de uma escola do campo no interior da Bahia e escreve, desenha, argumenta e briga pela comunidade LGBTQIA+.

Palavras-chave: Narrativa. Memórias. Infância. Queer.

 
“BURURU” FOR HIM, “INHA” FOR HER AND YURI FOR THE VALLEY: QUEERIFYING MEMORIES AND RECOMMENDING REMINISCENCES

ABSTRACT

This text aims to narrate, in brief, my story of queer-child-queer (I don’t know if this category could be described like this, but I believe that intensifying the queue through queer reinforces what I want with the reader. In this work, you will find my experiences, that is, the story of a boy from the countryside of Bahia who, as a child, was inspired by heels, lipsticks, dresses, dolls and a lot of Xuxa choreography. As an adult, he became a teacher at a rural school in the interior of Bahia and writes, draws, argues and fights for the LGBTQIA + community.

Keyword: Narrative. Memories. Childhood. Queer.

1. ESTREANDO   

Cheguei ao mundo no dia 03 de abril de 1982. Nasci no Hospital Regional de Itamaraju, no extremo sul da Bahia, às 8:00h, medindo 49 cm e pesando 3,300g. Desde cedo meu pai me chamava de “Bururu”, mesmo eu nunca tendo perguntado o que significava, já minha mãe preferia “Inha”. Recentemente, descobri que Bururu se trata de indígenas que vivem na margem esquerda do Rio Amazonas. Quanto a Inha, ficou claro que era um diminutivo carinhosx.

Destes dois apelidos, sempre preferi o Yuri, dado por uma lésbica amiga de minha irmã. Elxs jogavam futsal e eu era o gandulo. Certa vez, ela disse que Ilrismar era complicado de falar, então Yuri caía bem. Foi assim que uma representante do Vale[2] me batizou.  

Em 1984 minha família deixou a cidade de Itamaraju e mudamos para Itapé, sul da Bahia. No início, moramos de favor em uma casa que pertencia a uma velhx conhecidx de meus pais. Foi nesta residência que aos 06 anos, estando no quintal com um primx, senti um desejo inédito, até aquele momento, nunca antes sentido, e quis aproximar meus lábios dos seus, mesmo tendo total desconhecimento do que isso significava, fi-lo. 

Não sabia que havia uma normalização no mundo que me cobraria para sempre aquela transgressão “descabida”, “desajustada” e que fugia a todos os princípios da moral e dos bons costumes. É lamentável que “o selo da “normalidade”, colado aos corpos de determinados grupos de sujeitos desde a mais tenra idade, sugerem pistas para (re)pensarmos que nem mesmo as crianças escapam às normas regulatórias de gênero” […] (JUNIOR; POCAHY; OSWALD, 2018, p.63). 

Mas aquele instante foi tão natural para ambos, tão bom que repetimos a cena até os 10 anos. Depois disso, tivemos que parar porque ao observar as pessoas e suas atitudes a nossa volta, entendemos que estávamos vivendo algo tido como ruim, representado como pecado para a infância porque “a criança viada não existe. A criança bicha tampouco. Idem à criança queer. Neste sentido, o que podemos pensar são formas de insurgência a contestar as noções sagradas e essencializadas de infância e do que é e pode uma criança” (JUNIOR; POCAHY; OSWALD, 2018, p. 61).

Dodsworth-Magnavita (2012, p. 17) afirma que “Foucault, mais de uma vez, apontou para o fato de que a vida é uma escolha entre perigos. Não existe um “caminho ideal”, mas sim riscos mais ou menos administráveis”, mas para mim que nunca ouvira falar sobre administrar riscos, era impossível aceitar que beijar, acariciar e gostar de estar próximo ao primx não fosse tão natural como caminhar de bicicleta.  

Ainda nesta mesma casa, por volta dos 07 anos, tinha o hábito de esperar meus pais irem trabalhar e minha irmx estudar para ir até o cesto de roupas sujas e vestir algumas peças femininas. Preferia o cesto por não saber dobrar as roupas já guardadas nas cômodas. Amava pôr o vinil do “Xou da Xuxa 3” e repetia por inúmeras vezes a canção Apolo que dizia assim:

“O meu cavalo branco tem o branco da paz,

vai descobrir o mundo onde somos iguais.

Se existe esse mundo guarda ele pra nós,

me mostra esse caminho no galope veloz.

Apolo, viaja para liberdade.

Apolo, me leva para felicidade”.

Hoje, com o olhar de um adultx, pego-me a pensar o porquê de uma criança em tenra idade gostar de uma canção que falava de liberdade, que trazia na letra a fuga, o desprendimento. Mas, mesmo sem entender, esse meninx já sentia que necessitava passear pela passadeira de sua casa com a tolha na cabeça, com o batom tomando-lhe os lábios. Talvez, fosse aquela letra, a razão do desprendimento ou quem sabe, a mola propulsora para o encontro com o próprio corpo.

No mais, hoje, cheguei à compreensão de que a heterossexualidade é concebido, por uma parcela da sociedade, como uma categoria que está além de uma definição da sexualidade, elx é um ato político imposto que regula os corpos. Então, inconscientemente, um garotx de salto e batom já transgredia a normalidade do mundo.

Isso reforçou o entendimento de que as “masculinidades performativas podem contribuir para problematizar as normas regulatórias de gênero que buscam normatizar e privilegiar determinadas formas de materialização de corpos e gêneros” (JUNIOR; POCAHY; OSWALD, 2018, p.96), e sem me dar conta, já trazia essa problematização para o meu mundo delicado.       

Mas nem tudo foi festa, certa tarde, depois de passar o batom, prender a toalha na cabeça e pôr os pregadores nas orelhas, apanhei uma saia jeans e, estando sem cueca, puxei o zíper com muita força. Não demorei para sentir uma dor aguda. Minhas mãos ficaram vermelhas, a dor aumentava e o desespero foi maior quando notei a carne de minha genitália entre todo o zíper.

Corri para o quintal e pedi socorro à vizinhx, essa antes de perguntar o que houve mostrou seu ar de deboche. Elx deitou-me no sofá da sala e fiquei à espera de meus pais, mas com elxs vieram a enfermeirx do postinho, minhas tixs, primxs e vizinhxs. Até o cachorrx quis me humilhar latindo para a toalha sobre a minha cabeça. Meu pai que tinha um açougue, ainda estava sujo de sangue.

Depois da genitália costurada no sofá da sala, vizinhxs e parentes terem partido, minha mãe me pegou para dar banho. Para minha tristeza, meu pai a interpelou dizendo: “quem dá banho nele, sou eu”. Lembro nitidamente de cada som que saia de sua boca. Ele me levou para o quintal, apanhou a escova de dar banho nos cavalos e burros de sua Olaria e começou a passá-la sobre minhas costas dizendo: “criei filhx para ser homem, não viadx. Se você for viadx, eu te mato”. Nada disse, acho que elx deve ter percebido o terror no meu olhar e aquilo bastava. Meu pai havia cumprido o seu papel disciplinador.

Pollak (1989, p.09) diz que

A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou Estado desejam passar e impor. (POLLAK, 1989, p. 09)

Naquele instante estava nesta fronteira. Recebia uma ordem: “Criei filhx para ser homem”, havia um comando, a norma se personificava em meu pai e elx acreditava ter o direito de impor e de fazer minhas escolhas. Butler (2015, p. 49) diz que “[…] quando se julgam as pessoas por serem quem são, estabelece invariavelmente uma distância moral clara entre quem julga e quem é julgado”. Na verdade, não sabia o que significava ser minoria, mas do que vale saber o significado de algo quando você já é o que lhe nomeiam? 

Junior et al (2018, p.59) traz a seguinte reflexão:

[…] Se cabe ao adulto enunciar a última palavra sobre quem são e como devem ser as crianças, então colocamos em voga o esvaziamento do papel social de um cidadão que, devido à pouca idade, estaria impossibilitadx de participar da vida política, cultural e responder pelos próprios atos” (JUNIOR; POCAHY; OSWALD, 2018, p. 59).

Quando entendi que não era bem-vindo no universo dos meninxs por não gostar de carrinhos, futebol, empinar pipa e atirar pião, apeguei-me aos estudos e aos desenhos, via nisso uma fuga da truculência de meu pai e dos abusos dxs colegas. Entendo que na sociedade normalizadora, “as masculinidades são múltiplas. Diversos tipos de masculinidades coexistem e são produzidos simultaneamente. Isso se dá para além do modelo de masculinidade hegemônica” […] (JUNIOR; POCAHY; OSWALD 2018, p. 95).

Com isso, para as pessoas de meu convívio, o normal era perpetuar as coisas de meninx. Todavia, o que me inspirava era o universo feminino. Perdia-me desenhando, fazendo bonecxs de argila, produzindo pequenos contos e poemas.

Arquivo pessoal – Rainha e baronesas da novela  “Que Rei sou Eu

Fazia as bonecxs de barro na Olaria de meu pai. Criava mulheres de vestidos, de saias, de cabelos e com saltos. Em uma manhã, enquanto um rapaz forte cavava o barreiro com uma enxada, eu, sentadx na grama, esperava a argila para brincar. Sem esperar, elx piscou para mim. Então, senti-me no direito de retribuir. Soltei um beijo.

Do nada, levei uma bofetada vinda pelas costas e o olhar de ódio de meu pai que se misturava ao reflexo do sol, já o rapaz, sorria. Ainda não sei se aquela piscadela foi provocativa ou se tinha maldade por elx ter notado e eu não, a presença da truculência. Em casa, a pancada foi maior. Ao dormir, o tocar das costas no lençol, despertava-me.

Arquivo pessoal: Meu pai e minha sobrinha na Olaria

2. APRENDER DÓI (O BEBÊ É A BIA)

Foi no município de Itapé que fiz o primário, o ginásio e o ensino médio em magistério. Cheguei à escola pela primeira vez aos 07 anos, demorei mais 01 para ser alfabetizadx. Levei muitos puxões de orelha para aprender a ler. O título dessa subseção faz menção a uma lição que me trouxe outrxs traumas. Por conta delx, levei beliscões, fui chamadx de burrx e preguiçosx pelx professorx.

Lembro que chorava. Elx me mandava abaixar a cabeça sobre a mesa e só levantar quando fosse embora. Eu passava pela condenação do não-saber e “a condenação torna-se o modo pelo qual estabelecemos o outro como irreconhecível ou rejeitamos algum aspecto de nós mesmos que depositamos no outro, que depois condenamos” (BUTLER, 2015, p.50). Além disso, “a instituição educacional, ao refletir as marcas de um determinado tempo-espaço, nem sempre é um lugar favorável para que as crianças desempenhem livremente as mais simples escolhas” (JUNIOR; POCAHY; OSWALD, 2018, p. 64).

Buscar a imagem desta lição na rede não foi difícil, pois a tinha decoradx, mas vê-lx e enfrentá-lx foi doído. Assim, creio que é pertinente trazer neste documento a atividade que me fora imposta. Sobre elx, tentava compreender o processo de leitura, ou seja, como aqueles “Bês” e “Às” eram capazes de formar sons e palavras que podiam ser entendidxs.

Passei muitos dias de castigo em um canto da sala olhando a imagem de uma mulher e uma criança sem saber ao certo por onde começar, de que modo eu poderia juntar aquelas coisas em minha cabeça. Sentia-me impotente mesmo sem saber o que aquilo significava. Xs colegas olhavam e riam, enquanto isso, a Babá e a Bebê me miravam da página fria de um livro com orelhas.  

Google Imagens

3. RASCUNHANDO PARA SER PERCEBIDO 

A adolescência é um período conturbado. Elx surge com impetuosidade, desligamentos e o senso de mudar o mundo, e era assim que me via.

Aos treze anos, ouvindo a rádio comunitária da cidade, um homem de voz estridente anunciou um concurso de logomarca para a Central Única dos Trabalhadores (CUT). O prêmio seria um walkman da marca Aiwa. Além disto, havia o prestígio de ver seu desenho representando um setor importante dx pequenx cidade de Itapé.

 Isto me empolgou e comecei a rabiscar alguns desenhos. Passei algumas noites sem dormir. Acreditava que essa seria a oportunidade de me mostrar importante e imponente. Após quatro meses do lançamento do concurso, algumas noites em claro, veio o resultado final.

Era o horário do meio dia, estava no quintal sentadx sobre um tamborete de madeira. Segurava o radinho de pilha na direção de um dos ouvidos. Depois de muitos agradecimentos, a voz disse que o desenho escolhidx era o que tinha o rosto de uma mulher dentro da enxada e de um homem envoltx na foice, que embaixo desses rostos, um bebe saía do broto.

Neste instante comecei a tremer, o coração acelerou. Ao ouvir meu nome, gritei no quintal “Eu ganhei…eu ganhei…mainha, eu ganhei”. No dia seguinte, fui a pequena rádio que ficava na torre da igreja católica receber meu prêmio. Dei uma pequena entrevista e saí de lá vaidosx, com o ego infladx. Esse acontecimento encorajou-me e aos dezesseis anos escrevi para a Gráfica Recol localizadx em Itabuna, no sul da Bahia, pedindo uma oportunidade de trabalho.

Lembro que junto ao pedido, enviei vários modelos de logomarcas que a empresa poderia adotar. Fiz os desenhos por acreditar que a marca usada era “apagada”. Não demorou e recebi um retorno da Gráfica solicitando meu comparecimento. Pouco conhecia a cidade de Itabuna. Pensei em não ir, mas Aurenize, a professorx de inglês, ao saber da história, levou-me.

Fomos bem recebidos pelx donx da empresa e isso me rendeu meia bolsa de um curso de Artes Plásticas com Carlos Santal no Espaço Cultural de Itabuna. Tive que aprender a ir e voltar de Itabuna sozinhx. A professorx me ensinou como pegar o ônibus e a atravessar a imensa ponte do Rio Cachoeira.

Nessa época, em minha casa, vivíamos uma grande crise financeira, meu pai já não tinha Olaria e açougue. Minha mãe desempregada e o dinheiro para as passagens se esgotou. Fiquei três semanas sem comparecer as aulas até que a professorx soube e arcou com meus gastos. Algumas vezes perdia o ônibus para minha cidade, então, ficava no ponto desenhando as pessoas que passavam. Achava riqueza onde a loucura do vai e vem se ocultava. 

Depois de um ano de idas e vindas a Itabuna, chegou a formatura. Elx ocorreu com uma exposição no Centro de Cultura Adonias Filho. À época, aquele foi o dia mais importante de minha vida. Sentia-me reconhecidx, a família e os amigxs estariam ali para me prestigiar. Elxs deveriam reconhecer que eu era um artista e isto já bastaria para que superassem qualquer decepção que eu lhes desse. 

Na noite do evento, vendi um dos três quadros e com o dinheiro reformei o telhado de minha casa.

Arquivos Pessoais – Noite da vernissage

 

Logo o glamour se foi e voltei a realidade. Meu pai já não era o homem de antes, a bebida e as mulheres tinham destruído seus dois negócios e tivemos que viver a base das apostas de baralho que elx fazia na praça da cidade, já minha mãe e eu limpávamos vísceras de boi – que aqui chamarei de fato – no rio cachoeira. Nas sextas-feiras, elx, eu e mais duas de suas amigas íamos à roça do Senhor Araildes fazer este trabalho.

Saíamos às 3h da manhã porque tínhamos que andar 05 quilômetros. Quando não havia matança de boi por lá, íamos até o rio da cidade aguardar a chegada de fato para limpeza. Eu tinha uma varinha que usava para virar as tripas na correnteza. Elx era branquinhx, por vezes, tinha que tirar o excesso de sebo. As partes mais densas do gado como o mocotó e o bucho eram limpxs no quintal de nossa casa.

Lá havia um fogo de lenha com tachos de água fervente que tirávamos os pelos do mocotó e batíamos a unha em uma pedra para que se desprendesse. Quanto ao bucho e o “livro” – órgão do boi que nunca soube o nome científico – eram limpxs em grandes bacias de água quente. Via minha mãe debruçadx nestas bacias por inúmeras vezes enquanto eu comia tripa assada com farinha seca e pimenta para ir à escola.

Certa vez um garotx reclamou ao professor de história que eu fedia e o professor chegou bem pertinho de mim e disse que aquele cheiro não o incomodava e pediu que meu colega se retirasse. Meu rosto ficou vermelho. Tinha vergonha do que vivia, mas era preciso comer. Os garotxs chamavam-me de “viadx fateirx”, “comedor de tripa”. Pensava que terminaria a vida ali, sem saída, tentei me findar no Cachoeira.

Para Junior et al (2018, p.65):

Não há como negar que todos os sujeitos colocados na condição de abjeto são o efeito das normas regulatórias de gênero. Esses sujeitos, ao serem considerados “contaminados”, “diferentes” e “anormais”, provocam inúmeros estranhamentos porque desestabilizam as convenções sociais esperadas. (JUNIOR; POCAHY; OSWALD, 2018, p.65)

Arquivo pessoal: Fundos de casa onde também ocorriam as limpezas do fato.

Do nada, meu pai decidiu vender bananas e as pendurava na janela de casa. Aos sábados, eu ia à feira vendê-las próximo à barraca de uma tia que também nos dava alguns mantimentos. Em minha cabeça, aquilo não era coisa para mim…um meninx delicadx e artista. Eu queria criar roupas, logomarcas e pintar quadros e não gritar por bananas maduras e baratas estendidas sobre uma lona preta.

Nada ia bem, para piorar, meu pai achou de discutir com um homem enquanto eu chamava os fregueses. De imediato, o senhor apontou para mim e disse: “Melhor ter um filhx vagabundx do que um filho viadx”. Meu pai somente olhou em minha direção, meu corpo tremeu. Receei que apanharia ali mesmo, mas elx somente olhou. Aquilo bastou para que eu desejasse a morte delx.

Ainda sobre o episódio, em casa, minha irmx disse: “antes de fazer as coisas, penso em mainha e painho, você deveria pensar também”. Pergunto-me se aquele olhar foi um modo delx me proteger dos preconceitos do mundo, mas “o que é enaltecido como proteção à criança revela a tentativa de manutenção da vivência heterossexual como natural e, consequentemente, concede caráter de anormalidade às sexualidades dissidentes, afinal se protege do que é perigoso!” (BRAGA; MACHADO; OLIVEIRA, 2018, p. 78).

4. O GINÁSIO E AS VONTADES DE UM CORPO 

Estudar e desenhar passaram a ser meus pontos de fuga. Ficava horas inventando coleções de vestidos, fazendo textos sobre o que achava das pessoas que conhecia e indo ao barreiro construir minhas bonecxs de argila. Meu silenciamento era perfeito. Criava coleções majestosxs de roupas que poderiam ser usadas por grandes estrelas do cinema; minhas bonecxs eram esculpidxs com corpos invejáveis; em meus textos, era o deus das pessoas que me xingavam e sempre dava um destino ruim para elxs.

No distanciamento dos outros me construí sozinhx. Tal mundo paralelo surgiu em face de pais que não abraçavam, beijavam ou perguntavam sobre a escola; de uma irmx mais velha que pouco se importava se me batiam ou xingavam; do corpo e da pobreza não aceitxs.

Ainda em tempos de “vacas gordxs”, meu pai me levou a cidade de Itabuna para comprar uma bicicleta. Na loja bati o olho em uma Monark preta e vermelha com o quadro curvilíneo. A bicicleta encheu meus olhos e pensei “tem que ser essa”. Meu pai e o vendedor disseram que aquele modelo era feminino e que eu não poderia usá-lo. Então, arranquei forças de onde não sabia e disse: “Então, não precisa comprar, painho. Só gostei delx”. Diante disto, elx nem olhou para mim ou para o vendedor, só disse: “embala isso”. Aquela foi a única vitória que tive sobre elx.

Na escola furavam o pneu de minha bicicleta e colavam folhas de caderno com dizeres: “viadx fateirx”, “bicicleta de bichx”, “Dá cu” e por aí além. “O viadinho abusado é corpo resistente, mas, sobretudo, corpo violentado” (BRAGA; MACHADO; OLIVEIRA, 2018, p.84).

Ainda para Braga et al (2018, p.78):

Os lugares cristalizados de feminino e masculino, funcionais à heteronormatividade, são corroborados no espaço escolar, nos quais, desde o uniforme até a disposição dos banheiros, encontramos mecanismos úteis a uma vigilância e regulamentação de como os corpos devem se comportar a partir do seu sexo “natural” (BRAGA; MACHADO; OLIVEIRA, 2018, p.78).

Todavia, essa coerção ao sexo natural ocorria em outros espaços. Na rua não era diferente, quando passava pedalando por algum grupo de garotxs, ouvia: “olha elx”. Lembro que nesse período, nem tudo foi ruim, houve algo bom no ginásio, da 7ª a 8ª série estudei com um garotx chamado Danilo, que me protegia dos ataques.

Diziam que éramos namoradxs, mas não passava de uma inverdade. Elx morava no interior da cidade de Itapé e eu pedalava 04 quilômetros para vê-lo em alguns finais de semana. Elx foi meu primeiro amor. Um amor sem beijo, sem toque, sem sexo; sem conhecimento, mas com cumplicidade.

5. A SÍNDROME DA JULIETA SEM O ROMEU  

Fiz o Ensino médio em magistério. Na época, realizei uma prova, pois seria o último ano deste ensino técnico na minha cidade. Fui aprovadx, mas o meu amigo Danilo preferiu estudar o científico na cidade de Itabuna. Desde então, nunca mais nos vimos. A vida tem destas coisas, destxs partidxs ingratxs e injustxs.

Meu pai deixou de me obrigar a vender bananas na feira; minha mãe já trabalhava em regime de contrato na limpeza de uma creche. Como a cidade não oferecia muitas oportunidades de trabalho, decidi alfabetizar algumas crianças em um espaço de minha casa por uma mensalidade de R$ 5,00 reais. A diretora me forneceu carteiras e um velhx quadro de madeira. Alfabetizava pela manhã e pela tarde, a noite estudava o primeiro ano magistério.

Em meados de 1999, comecei a olhar diferente para um garotx chamadx Roberto. Elx tinha os olhos azuis e me deixava estranho quando me dava um “oi”. Sondei sua vida até decidi me aproximar. Elx gostava de jogar futsal no ginásio da cidade, então descobri os horários e ficava vendo-x jogar. Seu corpo suado e o odor doce que exalava quando passava próximo a mim, inebriava-me. Pronto, já estava apaixonadx de novo, e eu tinha que declarar esse amor.

Passei dois dias bolando uma maneira de falar, até que decidi por uma linda carta de amor, mas teria que ser inesquecível. Pintei em uma folha de sulfite uma trilha de árvores com folhas secas sobre o chão. Escrevi o texto da carta à parte e junto com o desenho levei à casa de um rapaz que fazia serviços de digitação na cidade. Elx fez o que solicitei, imprimiu o texto sobre o desenho. Pedi que colocasse a letra R no início. 

Fiquei pensando em um modo de entregar a carta. Então, optei por esperá-lx sair do futsal. Por volta das 22h saí da escola e fui direto para uma esquina próxima de sua casa. Lá aguardei por mais uma hora. Para minha desgraça começou a chover. Encostei na parede, o que fez diminuir a chuva sobre mim. A rua estava vazia, quando ouvi alguém correndo.

Sob a chuva e os trovões que clareavam o céu, vi a forma estilizada de um corpo na penumbra dos postes. Era elx. Estava sem camisa, de short de futebol e chuteira. Não precisei gritar. Só levantei o braço e o chamei. Seu corpo estava quente e molhado, pude senti-lx ofegante. Elx sorriu para mim e perguntou o que eu fazia ali. Somente disse: “esperava por você”.

Elx sorriu meio sem jeito e perguntou o que eu queria. Então, abri a mochila e apanhei a carta. Alguns pingos de chuva caíram sobre o papel e uma parte da aquarela mostrou-se verde oliva. Nada lhe disse, somente pedi que a lesse e que me encontrasse naquele mesmo lugar no dia seguinte. Contudo, alguém burlou o combinado, pois, no dia seguinte, somente o vazio das 2:00h da madrugada me fez companhia.

Depois de dois dias, quando cheguei ao colégio, boa parte das pessoas riam para mim. Alguns apontavam, outrxs zombavam sem modéstias. Ouvi palavras como “a bichx quer dar para Roberto”, “Vira homem desgraça”, “Há uma surra de umbigo de boi”. Tremi sem querer acreditar no que poderia ter ocorrido. Uma amigx me chamou de canto e me mostrou uma cópia da carta que havia entregado ao Roberto. 

Louro (2017, p. 67) argumenta que,

A escola é um dos lugares mais cruéis para se viver formas não hegemônicas de sexualidade. A discriminação, o repúdio e o deboche se esgueiram e se infiltram nas piadas, no recreio, nas paredes dos banheiros, nas escolhas de parceiros e parceiras dos jogos, das brincadeiras ou dos grupos de estudo. Suas marcas nem sempre são imediatamente visíveis, como costumam ser as marcas da violência física, mas podem ser particularmente persistentes e duradouras. As violências do cotidiano, por vezes miúdas e consentidas, se diluem, se disfarçam e se propagam exponencialmente. (LOURO, 2017, p. 67)

Cópias da carta foram distribuídxs na escola. Elxs sabiam o que eu tinha feito. “O “armário” não é uma simples escolha inofensiva adotada pelos jovens para manter sob sigilo determinadas sexualidades, mas é uma forma de lutar contra a “zoação” praticada em espaços fortemente marcados pelas normas regulatórias de gênero” (JUNIOR; POCAHY; OSWALD, 2018, p.68).

Por sorte, meus pais nunca souberam. Procurei o Roberto, elx me disse que a namoradx tinha encontrado a carta e feito algumas cópias, mas descobri que não. Fora elx. Nunca entendi o porquê, mas continuei alimentando um sentimento solitário e sem retorno. Passava horas e noites em frente a uma máquina de escrever criando histórias e poemas para um amor solitárix.

Comecei a segui-lx nos finais das festas, a presenteá-lx, a convidá-lx para assistir filmes em minha casa. Era uma compulsão, uma loucura que só teve fim quando, ao conversarmos na esquina da casa delx, toquei sua genitália. Até aí tudo bem, o clima esquentou, mas quando peguei em seu pescoço e encostei meus lábios nos delx, fui empurrado com violência ouvindo-x dizer: “Tá loucx? Pegar pode. Beijar, não”. 

Diante do que houve, não sabia com quem desabafar e mais uma vez me voltei para os papeis. Escrevi um pequenx conto com personagens fictícios de uma história real, queria entender-me, queria buscar uma resposta para a não aceitação do beijo. 

                                                                                          Arquivo pessoal:

                                                                   Capa do conto Amor + Sistema = Preconceito

Arquivo pessoal – A longa espera para a entrega da carta

Arquivo pessoal – Final do conto

Toda a história vivida com Roberto foi escrita em uma ficção mentirosx. Em seu final, tentei aliviar meu sofrimento pela segunda vez. Não era Ingrid quem morria, era eu, sempre fui eu, eu quem perecia. 

7. ELE É DIFERENCIADO, ESPECIAL OU MÃNÃY?

Quando cheguei a Itamaraju, no ano de 2001, minha mãe trabalhava de doméstica e meu pai tinha aberto uma pequena mercearia e açougue. Elx sempre fora do comércio, adoecia sem este tipo de trabalho. Passados alguns meses, a patroa de minha mãe me conseguiu um emprego em uma escola filantrópica na Comunidade de Veleiro, interior do município de Prado. Segundo sua patroa, a amigx que era administradora e diretora precisava de um secretárix.  

Arrumei minhas coisas e parti para o Veleiro. Jamais imaginei que aquele arrumar de malas perdurasse até hoje. Os professorxs eram e continuam sendo do Guarani, distrito de Prado, e de Itamaraju. Morávamos em uma república dentro da escola. Alguns dxs funcionárixs, uma vez ao mês, iam à cidade trocar o cheque do pagamento e abraçar a família, eu fazia o mesmo.

A saudade de casa era imensa, não consegui criar laços de amizade com aquelxs pessoas. Éramos apenas colegas de trabalho. A escola era imensa. Cada profissional tinha seu quarto com banheiro. A privacidade existia, mas as relações interpessoais não eram amistosxs. A administradora e diretora agia com autoritarismo nas reuniões e no controle do espaço. A coordenação aparecia uma vez ao mês.

A escola atendia da Educação infantil ao Ensino Fundamental II. As crianças vinham das fazendas e comunidades circunvizinhas. Neste espaço, conheci o computador, aprendi a conviver, tive o primeiro contato com indígenas e adentrei no currículo formal de uma instituição de ensino. Não existia transporte escolar e os alunxs que moravam mais distantes andavam entre 10 a 15 quilômetros por dia.  

Tudo seguia sua normalidade, até que uma colega de trabalho, mais falante, perguntou-me de que fruta eu gostava. Eu disse que tinha uma namoradx em Itapé e que sentia saudades. Elx somente riu. Mas eu não era bobo e sabia que a ironia brotou dos lábios como uma erva daninha. Depois daí, as perguntas sobre minha sexualidade eram constantes. Passou a vir dos alunxs, delx e de outros colegas.

Não demorou e algo inusitado ocorreu. Ao trabalhar, não trancava a porta do quarto, pois a secretaria não era distante do alojamento. Os colegas notaram isso, então foi extremamente fácil entrar em meu quarto, vasculhar minhas coisas e terem provas de que sempre fugi dos padrões. Lá encontraram fotografias, cartas, poemas e provas suficientes sobre minha sexualidade.

Porém, só soube da invasão depois que as pessoas tinham saído da escola. Mas na época, as piadas eram constantes. Fiquei firme. Recordo-me que em uma manhã estava digitando um texto, quando um colega se aproximou e fez insinuações sexuais. Com uma das mãos, tocava a genitália, enquanto a outra me acariciava para que eu o tocasse. Levantei e saí sem encará-lx, mas pude ouvir suas risadas enquanto caminhava em direção à saída da secretaria. 

Aquilo foi uma tentativa de estupro ou mero assédio? “[…] vítimas, que compartilham essa mesma lembrança “comprometedora”, preferem, elas também, guardar silêncio” (POLLAK, 1989, p. 07), mas, desde o início do texto, optei por não esconder minhas memórias.  

Sabia que aquilo era uma armação e que logo mais pessoas apareceriam para fazer a rodinha pilhérica. Minha garganta deu nó e senti vontade de partir para porrada. Naquele instante, sabia que não daria para ficar naquele lugar.

A postura delx me fez lembrar Roberto, pois o viadinhx é aquele que toca e não aquelx que se deixa tocar. Hoje, vejo isso como um espectro do machismo e do heterossexismo estrutural onde o passivo é quem assume uma posição feminina, pois gay jamais será aquelx que “come”, pois ainda estará exercendo seu papel de dominador, daquelx que penetra, que enrijece o membro e mostra poder.

Braga et al (2018, p. 82) relata que “o prazer do cu é produção de afeminados penetráveis! […] Desse modo, veicula-se a reiteração do feminino como corpo desejante pela penetração e o masculino, em oposição, é o sujeito que deve renunciá-la”, ou seja, alguns não veem o penetrar com a mesma significação do ser penetradx.   

Em meados de 2002, a administradora contratou um professor novatx. Mesmo sem formação como os demais, lecionava língua portuguesa. Elx gostava de usar colares e brincos da cultura indígena. Não éramos próximos, mas todas as vezes que ia até a secretaria em busca de algo dizia. “Posso assinar o ponto mãnãy”. A diretora saiu hoje, mãnãy?”, “Você sabe se o pagamento sai hoje, mãnãy? Enfim, não mais me chamava pelo nome. Aquilo me irritava porque não sabia o significado.

Porém, a curiosidade é algo que está em nós. Decidi perguntar a uma funcionárix da cantina o significado daquela palavra. Elx mexia um tacho de merenda quando perguntei, lembro nitidamente que elx sorriu e olhou pra mim perguntando: “Quem te chama assim?”. Se quer havia mencionado que me chamavam assim, mas elx logo fez suas deduções. “Significa viadx”[3], respondeu batendo a colher sobre a palma da mão para experimentar o mingau.

Tempos depois, esse mesmo professor foi trabalhar em outra escola e o apelidaram de “Diferenciadx”, pois quando bebia se insinuava para outros rapazes. Hoje, mesmo casadx com uma mulher, carrega esse rótulo. Penso que se for verídico o que falam sobre sua sexualidade, elx só queria encontrar um parceiro mãnãy

Quanto à resposta para esta subseção: Elx sempre foi tudo em um só.

8. O LUXO DAS PASSARELAS ME AGUARDAVA, SÓ ERA IR

Eu ainda me sentia deslocado na escola, pensava que ali não era o meu lugar. Eu merecia bem mais. Não aceitei que assinassem minha carteira como secretárix, em minha cabeça, elx seria assinadx como estilista de uma grife famosx e não aceitava menos que isso. Então, em março de 2003 saí da escola e fui a São Paulo para casa de minha irmx no Parque Novo mundo, na zona norte da capital. Elx morava na favela Maria Quedas.

Cheguei empolgado, seria estilista e já estava decididx. Coloquei uma pasta de desenhos embaixo do braço e fui a algumas grifes. Perguntavam-me se eu tinha ou estava cursando alguma faculdade, dizia que não. Então, logo era dispensadx. Um amigx da família vendo meu empenho, chamou-me para trabalhar com elx em uma loja que vendia roupas de fábrica no Braz, centro de São Paulo.

Segundo elx, trabalhando com alguém que fabricava, ficaria mais fácil encontrar parcerias, mas não foi bem assim. Lá tinha que gritar e apanhar fregueses na calçada para vender calcinhas, tops e saias. No natal, ficávamos com um sino nas mãos e toucas vermelhas. A donx, uma coreanx, mais gritava conosco do que ouvia. Então, decidi sair daquele lugar tóxico.

Não tardou e vendo uma revista de moda, encantei-me pelas estampas da More Core Division – MCD. Então, pus minha pasta de desenhos embaixo dos braços e fui até a loja de fábrica. Lá fui bem recebidx pela estilista da marca. Sem modéstias, disse-me que eu teria uma oportunidade como os demais Free Lancers, iria desenhar estampas e receber por produção.

Passava noites riscando no papel vegê e produzindo desenhos de acordo com o que fora solicitado na coleção. Recebi uma cartela de cores e um texto acerca da proposta das roupas e a tendência que seguiria. Eu tinha um roteiro e deveria segui-lx. Consegui fazer alguns trabalhos para a marca e isso me motivou por demais. Tinha notado que o mundo da moda era generosx.

Logo, o trabalho acabou, sabia que era temporário e o desemprego veio. Não poderia ficar na casa de um parente sem trabalho, então resolvi alfabetizar a meninadx da favela. Dei aulas de reforço na laje. Volta e meia me pegava pensando… saí da Bahia para ser um estilista e olha onde estou, explicando, corrigindo e lendo livros com as crianças.

Fiquei em São Paulo até o mês de dezembro de 2003. Em fevereiro, a administradora e diretora da Escola Santa Rita me chamou de volta. O luxo das passarelas não era para mim, voltei para educação. 

                                                   Arquivo pessoal

                                                             Forró da Comunidade Maria Quedas/ Zona Norte-SP

Arquivo Pessoal – Cartela de Tecidos e croqui 2003

CONCLUSÃO PARCIAL    

No ano de 2007 procurei alguém para trabalhar de motoboy em um negócio que estava dando bons rendimentos na cidade de Itamaraju, o mototaxi. Precisava de alguém de extrema confiança, então chamei o filhx da primx de minha mãe para trabalhar em sociedade. Entrei com a moto e elx com o trabalho. Elx era um rapaz tranquilo, às vezes, saíamos de bar em bar tomando cerveja e jogando conversa fora.

Certa vez, um amigx gay que gerenciava uma boate de stripers em Teixeira de Freitas me convidou para assistir ao show dxs novxs garotxs que tinham acabado de chegar à Casa de shows. Achei bacana e convidei esse primx distante para ir comigo. Subimos na moto a noite e fomos, mas para nossa desgraça, próximo ao posto Nova Era, a moto achou de furar o pneu.

Como elx era um cara safx, apanhou o kit da moto, desmontou o pneu, tirou a camisa e pôs entre a capa do pneu e a câmara de ar. A noite estava clara, não me lembro se era lua cheia ou minguante, mas recordo-me muito bem do reflexo da noite sobre aqueles músculos bem definidos. O modo como os músculos dos braços se contraíam, fez-me desejá-lx.

Subimos na moto e andamos ainda cerca de oito quilômetros até o posto. Furo feito, chegamos à boate no começo do show. As garotxs nuas e seminuas faziam performances em um ferro ao centro do palco. Meu amigx estava no caixa vestidx de coelhinhx rosa. Antes de me dar boa noite, apanhou minha mão e me deu a chave de um quarto. Ao olhar pra trás, vi meu primx com os olhinhos brilhando sobre a morenx nua que segurava uma cartola.  

Os quartos que ficavam aos fundos da boate eram os locais onde as mulheres atendiam seus clientes, mas meu amigx havia reservado um para que eu pernoitasse com meu primx. Ao chegar no cômodo, ascendemos as luzes e nos deparamos com uma cama redonda, luzes vermelhas, espelho no teto e uma decoração de corações. Então, rimos e olhei para elx perguntando se havia algum problema em dormirmos ali. Elx disse que não com um olhar maliciosx. 

Voltamos à festa, dançamos, bebemos e fumamos muito, mas nada que tirasse a sobriedade. Elx não conseguiu ficar com nenhuma garotx por mais que tenha tentado, eram um pouco carxs. Fomos para o quarto pela madrugada. Exaustxs, deitamos na cama de roupa, mas o sono não vinha. Senti que elx estava acordadx e o acariciei. Elx retribuiu dizendo que estava a fim, mas teria que me contar uma coisa.

Sentei na cama, ascendi à luz e perguntei o que era. Elx virou-se de lado, apoiou-se no antebraço e disse: “Somos irmãos”.

Naquele instante, deu-me uma crise de risos e falei que era loucura aquela história. Elx pediu que eu mesmo perguntasse a minha mãe. Depois disso, o silêncio imperou. Eu comecei a pensar que a tix X não era mais tia, o primx Y não era mais primx. A família mudara. Fui engandx por vinte e cinco anos de minha vida. Movido por um sentimento de raiva e vingança pensei, pois agora que vou trepar com você.

O tesão que sentia se foi, veio a raiva, o ódio e o desejo de vingança. Vingar-me seria fazer sexo ali com meu irmão para que todos soubessem. Para que minha mãe se sentisse tão culpada como eu. Apaguei a luz, tirei a roupa delx com impetuosidade e lembro nitidamente de ter dito “Hoje é a noite do incesto”. Fizemos sexo duas vezes naquela madrugada. 

Esperei uma semana e estando minha mãe assistindo TV, cheguei por trás do sofá, pondo-me em uma posição que não pudesse encará-la. “Gosto de homem. Sou gay”. Elx nem me olhou, somente disse: “Já sabia”. Aquilo soou como uma afronta, então continuei. “Você também sabia que transei com Pedro?” Neste instante, ela desligou a TV e me olhou com os olhos de choro. Senti que a tinha atingido e perguntei como elx estava sabendo que foi a culpada por dois irmãos treparem.

Minha mãe entrou em desespero, pediu desculpas e me fez prometer que jamais contasse nada para meu pai – o homem que me criou –, pois elx poderia matá-la. Assim fiz, elx faleceu em 2013 sem, de fato, saber que eu não era seu filhx. Desceu a sepultura com a certeza de minha sexualidade nunca dita e com a mentira de ter criado um garotx que jamais carregou seu gene. Apesar da brutalidade e do medo que sentia, eu o amava.  

FONTE DE INSPIRAÇÃO

BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

BRAGA, Laíra Assunção; MACHADO, Thiago Pereira; OLIVEIRA, Luciano. Entre o temor e a resistência: o demônio da boneca e o “viadinho” abusado. Periódicus, Salvador, v 1, n.9, p. 75-86, 2018. 

DODSWORTH-MAGNAVITA, Alexey. O surgimento dos homossexuais. Revista Filosofia: ciência & vida, São Paulo, n. 70, p. 14-22, mai. 2012.

Educando com simplicidade. Aula de Alfabetização. Disponível em: < http://educandocomsimplicidade.blogspot.com/2015/01/alfabetizar-que-dilema.html>. Acesso em: 19 de agosto de 2019. 

JUNIOR, Dilton Ribeiro Couto; POCAHY, Fernando; OSWALD, Maria Luiza Magalhães Bastos. Crianças e infâncias (im)possíveis na escola: dissidências em debate. Periódicus, Salvador, v 1, n.9, p. 55-74.

LOURO, Guacira Lopes. Flor de açafrão: takes, cuts, close-ups. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.


[1] Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB

Mestrando em Ensino e Relações Étnico-Raciais -PPGER

[2] Vale é uma expressão do Pajubá LGBTQIA+. É o local onde metaforicamente residem, em plena liberdade, as pessoas desse grupo.

[3] Mãnãy é uma palavra da língua Patxohã, utilizada para se referir aos homossexuais masculinos.