lemuel guerra[1]
e quem + quiser
1 . a sociologia é inseparável de um certo mal estar com a época, de um gegenzeitgeist, mas também de certo preparo/treinamento/aparelhamento para jogar/viver no olho do furacão do presente. ela não é uma potência, como são as religiões, as escolas, o capitalismo,a ciência, o direito, as mídias. suas batalhas são interiores e, como todas as batalhas, risíveis (positivismo x dialética; construcionismo x realismo, teoria x empiria etc). na medida em que não é uma potência, a sociologia não pode lutar contra as potências, mas pode guerrear sem batalhas, pode fazer guerras de guerrilha. não pode dizer-lhes nada, não pode lhes falar. no máximo mantém, atravessando-nos, cada um que assim deseja, conversações e inquietudes. é em cada um, habitado pela sociologia e habitando a sociologia, que acontecem conversações e guerrilhas: nele, consigo mesmo.
2 . a sociologia entra sem pedir licença, sem piedade, sem complacência! quando ela circula em nossas veias, aprendemos que não temos que esperar ler isto ou aquilo, e aquilo sobre isto, e isto sobre aquilo para nos atrever a falar em nossos nomes. nossa relação com autores, teorias, discursos autorizados, com dogmas, é de assalto, como alguém que invade, que ocupa, que entra e sai sem permissão, que rouba o beijo, o sexo, o prazer, sem respeito sacralizante, sem prestar continências, nem seguir scripts. tudo bem que os autores falem pelas nossas bocas de sociólogos, mas o que lhes fazemos dizer tem algo de monstruoso, porque envolve a força do fluxo e agenciamento deles, mas potencializa também descentramentos, deslizes, deformações, usos imprevistos, traições, trocas de fluxos discursivos, que são apenas fluxos, sem primazia sobre outros fluxos como os de merda, sangue, esperma, saliva, suor, medos, correntes políticas, ação e contra-ação, de subjetivação, de trabalho de suspensão de si e do naturalizado, ao sabor da corrente e da contracorrente.
3 . a sociologia permite um gozo em certa medida perverso: o gosto de todo ser dizer as coisas que quer dizer em nome próprio: não como um sujeito, um eu, uma pessoa que fala respeitosamente em seu nome, mas quando, através de um rigorosíssimo exercício, nos despersonalizamos, nos abrimos de ponta a ponta para sermos atravessados pelas multiplicidades e intensidades que nos percorrem. é quando aprendemos a falar do fundo do que não sabemos, de dentro da nossa ignorância desejante, interessada, armada com uma atenção dificultada, como aquela exigida dos que habitam pântanos e se acostumam com nenhum chão firme nunca. quando nos tornamos uma legião, um conjunto de singularidades soltas, de nomes, sangue, unhas, respiração dos pequenos acontecimentos, de estrias do magma dos fenômenos é que somos mesmo sociólogos. quando somos atravessados, enrabados de assalto por um estilo, um jeito, um modo de olhar e ser as coisas que queremos ver e entender.
4 . não tenhamos ilusões: o peso e palidez da linguagem universitária, carregamos como cadáveres inescapáveis. mas sob o peso deles nos sacudimos, nos mexemos, seguimos linhas de fuga, saímos e voltamos para a corda bamba, nossa casa inabitável – para a instabilidade do fluxo, do pântano, do corpo sem órgãos, da linguagem acesa que fica tão mais hermética, quanto mais cultos e lidos são os que nos ouvem ou leem. a ideia é aprender a escrever e fazer sociologia para os que deixam de lado o que não entendem sem preocupação, abrindo-se para um não entendimento que não envergonha, não atrapalha. o que ouvimos ou lemos não será entendido a partir de um livro ou discurso que já lemos ou ouvimos, como se tudo fosse igual às bonecas russas, uma contendo a outra.
5 . o lance agora é considerar os discursos que produzimos e com que nos deparamos em termos do que funciona ou do que não funciona; do como funcionam para mim, para você, para outros. se não funcionam, passemos para outra coisa. nosso encontro com os discursos escritos, lidos, desenhados, tocados, mostrados, nossa produção de comentários, descrições, associações, todo nosso exercício da sociologia é regido pela intensidade, ao modo das correntes elétricas: passa ou não passa. trata-se menos de explicar, compreender, interpretar e mais de sentir, de se deixar atravessar, de se permitir afetar. todo discurso será colocado imediatamente com o fora dele, algo como uma engrenagem menor contida em engrenagens maiores e mais complexas, a serem entendidas nelas, com elas e contra elas. em que medida os nossos discursos serão compreendidos e compreendemos os dos outros depende das correntes que ativamos e que são em nós ativadas, da funcionalidade delas para nós próprios e para os outros.
6 . trata-se de adotar o registro da intensidade, da clandestinidade, da relação com o fora, da experimentação, dos reflexos dos nanoacontecimentos e megamovimentos em grupos, indivíduos, cursos de fenômenos, maquinações que incluem o humano e o não- humano, sem concessão alguma, exceto a de encontrar aliados que queiramos e que nos queiram.
7. no exercício da sociologia não importam os títulos autorizativos para a produção de discursos: é quase como falar de algo como se fôssemos um cão com olhos e olfatos reveladores, sem respeito ao realismo raso dos que exigem que alguém seja drogado, para falar sobre drogas, que tenha visitado a austrália, para falar sobre os cangurus. para quem faz sociologia não funciona o argumento do loteamento, da feudalização da experiência, a reserva de domínio do real, do experimentado. nossas leituras dos autores e dos fenômenos são corsárias, com base na pirataria e na apropriação, as quais quanto mais imprevistas e escandalosas, mais valiosas.
8. a aposta da sociologia não é na ontologia dos fenômenos, dos grupos, das identidades, das instituições, mas nas relações transversais em que esses e outros traços e efeitos da vida social são produzidos, sem se preocupar em estabelecer com certeza que se pretende científica o ser e o estar no mundo – nenhuma bicha, nenhum hétero, nenhum professor, aluno, ou qualquer coisa em que pensemos e pelo que nos definamos, poderá dizer com certeza: eu sou uma bicha, eu sou hétero/homem, eu sou hétero/mulher, eu sou hetero/homo-transx/y/z, eu sou professor, eu sou aluno etc. mobilizamos jogos de linguagem em cujo âmbito e a partir dos quais pinçamos conceitos, categorias, com as quais antes de querer oferecer fórmulas explicadoras aos moldes das ciências duras, construímos interpretações de subterrâneos e mecanismos invisíveis em atuação no estilo figuracional (metonímico, metafórico). a sociologia opera em um regime do incerto, dos improváveis, do devir universal, pensando como os grupos, indivíduos, instituições, nações, descobrem, simbolizam, definem os vários, as populações, as espécies, os materiais, sentimentos, símbolos, discursos, práticas diversos que os habitam e atravessam.
9. a análise sociológica de discursos, de fenômenos sociais, define-se como a produção profissional de dissonâncias desestabilizadoras das harmonias pretendidas pelos conjuntos de atores mobilizados para a produção da vida social. essas dissonâncias se produzem quando o sociólogo recua da posição lhe outorgada biograficamente, pela sua inserção em sistemas de socialização e moldagem de si, no fora e dentro da sua própria formação de sociólogo, ativando os modos antirreduplicação, antinaturalização do seu lugar e do lugar dos outros sociais, introduzindo uma espécie de ‘desafinação no coro’, algo a ser evitado pelos que se interessam em apagar os vestígios dos golpes e contragolpes, com o objetivo escroto de manter a aparente inescapabilidade das coisas socioculturais, pela proteção das forças com que se exercem as correntes sociogênicas que nos arrastam, poderosas.
10. a sociologia se coloca diante de discursos, de fenômenos sociais de quaisquer das ordens, transcendendo o objetivo de registro, da mera descrição, da apresentação neutra dos fatos; através das chaves analíticas da sociologia executamos tarefas definidas pelo olhar sociológico – recortar, questionar, focalizar de modo suspeitativo, suspendendo e nos esforçando para iluminar os agenciamentos de subjetividades, os silêncios, as metáforas, as encenações, a eloquência e plausibilidade dos discursos, dos cursos de ação performatizados, instaurando uma certa capacidade e perspicácia irônicas e iconoclastas, exercitando, ao modo de um psicanalista ou detetive do social, uma atenção difícil ao que se lhe apresenta como a realidade dos fatos, a arrumação convincente das aparências e essências intervinculadas, praticando a análise dos raccords, das continuidades e descontinuidades e seus paradoxos.
11. o/a sociólogo/a faz seu trabalho de revolver os jogos de tensões, as tensões dos jogos, montando, através de sua paixão antidocumental, aquela que desconfia de sua potência de ‘registro do verdadeiro’, maquinações antimaquínicas, assumidas em seu caráter pluriperspectivístico, parcial, contaminado, resultante do deixar-se atravessamento pela legião de autores, de sujeitos que falam pela sua boca e são por ele/ela falados, gaguejados, silenciados, distorcidos, empoderados, desentendidos, estendidos, traídos, usados, parafraseados, negados, atravessados – os léxicos em cujos fluxos e contrafluxos somos forjados, constroem-nos como falantes, constroem nossos lugares de fala e não o contrário.
12. depois que passa pelas mãos, pelos olhos, pelo nariz, pelo desejo do sociólogo, tudo parece seu. depois que passa pelas suas mãos, olhos, desejo, nariz, nada parece seu! a tarefa do sociólogo: dar aos fenômenos uma voz, uma imagem, uma fantasmagoria elaborada, sem medo de perdê-los, traí-los! ao contrário, só interessa ao sociólogo o que teve força, caráter, para se perder dele. o sociólogo não trancafia afetos, cheiros, memórias, paisagens, funcionamentos, fluxos e contrafluxos, imagens que ele criou. o sociólogo é parteiro desanestesiador do mundo, que o marca e que é por ele ousadamente reconstruído.
13. a análise sociológica nunca é um simples resultado da aplicação de modelos teóricos que se conhecem a si mesmos com toda a clareza. a interpretação sociológica de um fenômeno é menos construída a partir de teorias, conceitos, categorias externas a ele do e mais o resultado do encontro sistemático com o funcionamento insólito de mecanismos objetivos que afetam modos de agir, de sentir, jogos de linguagens e subjetividades narrativas interproducentes dos sujeitos em suas interações, cenários em que atuam os indivíduos em seus agenciamentos, contra-genciamentos, fluxos e contrafluxos ativados.
14. o olhar/o ouvir/o sentir/o imaginar/o adivinhar sociológico serão tão mais interessantes e flamejantes quanto mais capazes de perceber modulações, consonâncias, dissonâncias, cadências, pausas, silêncios, vagarosidades, acelerações, variações nas espessuras fenomênicas e epifenomênicas, o contraponto espesso dos sentidos e dos não-sentidos da complexa rede de acontecimentos que formam a vida social, oferecendo para os indivíduos interessados modos de tradução do que vivem e deixam de viver, aos quais eles eventualmente sejam indiferentes ou mesmo resistentes.
15. a sociologia tem como objetivo compreender/interpretar/explicar os sentidos das ações sociais, mas ainda mais os não-sentidos observados no nível dos fenômenos e no nível dos epifenômenos – o não senso na profundidade e o não senso na superfície. superfície e profundidade têm não-sentidos diferentes: na superfície os fenômenos se oferecem como cintilâncias dos não-sentidos dos ‘acontecimentos puros’, esses que nunca terminam de chegar nem de se retirar. os não-sentidos dos ‘acontecimentos puros’, ao modos de vapores magmáticos, sopram sobre as superfícies seus sinais, oferecendo-se apenas de modo oblíquo, ao modo da luz que, à medida que tem suas partículas ou ondas alteradas, revela a existência, a densidade, a extensão dos corpos celestes, suas forças de atratividade e repulsão, seus modos de existência nos pontos das malhas dos espaços-tempos considerados.
16. a interpretação sociológica não apela a um a priori teórico/lógico. ela emerge de uma ação oblíqua e em aprendizados frequentemente baseados na ‘alteração’ dos fenômenos a serem explicados bem como dos seus intérpretes. ela é forjada através de uma atuação não claramente raciocinada/intencionada, na qual os analistas são sujeitos e objetos simultaneamente. trata-se de uma abordagem que implica uma atenção especializada à linguagem indireta e às vozes dos silêncios dos (epi)fenômenos socioculturais focalizados. o exercício do olhar sociológico implica em uma espécie de produção de deformações com tanto mais potencial revelador dos fenômenos, quanto mais conscientes desse modus operandi.
17. nos que fazem sociologia, o pensamento/razão e as emoções não dirigem ‘de fora’ a interpretação exercitada: sociólogos são eles mesmos, enquanto analistas, fenômenos e devires a serem analisados. eles sujeitos se constroem à medida que reconstroem os seus objetos, criando meios de expressão, idiomas analíticos que se moldam de acordo com sentidos e não-sentidos fenomênicos e epifenomênicos, tomados como pontos a serem iluminados, dobrados, redobrados.
18. toda análise sociológica é também uma fonte de recriação dos instrumentos teórico-metodológicos através dos quais se exercita e passam a ser manejados segundo sintaxes novas, despertadas pelas relações sujeito-objeto ativadas. o senso comum limita-se a abordar por signos convencionais as significações dos fenômenos já instaladas na sociedade/cultura. a sociologia é a arte de captar sentidos e não-sentidos não dantes objetivados, tornando-os acessíveis aos sujeitos que os ativam/experimentam, como se fosse a produção em prosa de uma poética das relações humanas – em suas implicações com o não-humano – através da qual emerge o apelo arriscado de liberdades e aprisionamentos particulares a conjuntos de outras liberdades e aprisionamentos – referidos a outras espacialidades e temporalidades – em cuja presença o ‘a ser explicado/descrito/interpretado’ é colocado.
19. a maneira mais interessante de entender uma época e seus fenômenos não é se concentrando nas características explícitas que definem seus edifícios sociais e ideológicos, mas sim nos seus fantasmas renegados, que assombram das profundezas, que habitam uma região misteriosa de entes cuja visibilidade nos é negada, os quais, no entanto, persistem e continuam a ser eficazes na afetação das dinâmicas da vida social. fazer sociologia é intercruzar imagens especulares do simbólico/imaginário (mitos, narrativas, atos fundacionais reconhecidos e disseminados pelas sociodiceias disseminadas pelas instâncias socializadoras legítimas) com o material que compõe a história secreta dos grupos, instituições sociais, aquela referida à ordem do substrato obsceno do tecido social, a zona fantasmática, ‘espectral’, que sustenta efetivamente o caráter explícito do que dizemos, fazemos e dizemos fazer, tão mais poderosos quanto permanecerem implícitos, habitando o espaço tateante das entrelinhas, do segredo que não ousa sequer se pensar, das fantasias traumáticas que se transmitem nas lacunas, nas fraturas, naqueles momentos nos quais se olha sem saber para onde ou o quê.
20. é quando somos tomados pelo não entendimento, atravessados pelas falhas dos jogos de linguagem, pela gagueira que nos desconcerta e embaraça, quando criamos uma língua estrangeira a partir da matéria-prima do léxico da nossa língua materna, nas suas veias e artérias e no meio dela, para falar, sentir, ouvir e ler os fenômenos do mundo, que podemos ser mais radicalmente sociólogos.
21. uma sociologia pós-realismo/representacional, ela irrompe como um ramo bastardo, um galho torto, uma estrada clandestina. não apenas assim considerada pelos socializados nas escolas sociológicas estabelecidas, mas pelos seus próprios formuladores, define-se como um estilo de praticar o olhar/a escuta/a afetação sociológicos que se pretende o minimamente fixo, forjado por entre as franjas da teorização sobre o social, aos moldes de uma linha de fuga em espiral, dobrada sobre si mesma. a maior parte do exercício do estilo sociológico de abordar as coisas sociais é concebida como ortorepresentações delas, quer da objetividade, quer da subjetividade construída e constituinte da vida social. isso implica em pensar que existe algo (subjetividade, objetividade) e a representação sociológica desse algo, geralmente cobrada em termos de exatidão, correspondência, lógica, cogência interna/externa e sentido. a sociologia pós-realismo/representacional propõe conceber os fenômenos sociais em termos de textos e linguagens, com inspiração paraláxica em algo desconstrutivista, mas a partir de um exercício, uma ativação de uma língua estrangeira cuja fonte e materiais são formados a partir da sintaxe e do léxico da língua materna em que praticantes da sociologia foram forjados, fora e dentro da aquisição e práticas do ofício da análise sociológica. isso implica pensar os constituintes da vida social, interpretá-los, focalizá-los como algo da ordem do ‘n-1’, sendo ‘n’ o que é considerado como realidade social, e o ‘n-1’ algo que transita entre a concretude e a representação da vida social, abolindo a distinção entre elas, colocando em curso um exercício da sociologia a partir da ordem de contextos extradiscursivos suspensivos de gramáticas cognitivas, emocionais, interpretativas, com base nas quais atores sociais comuns e os que se dedicam à análise sociológica operam. uma abordagem intersticial que não se pretende ciência: a relação entre realidade e representação é colocada em suspensão e o que se pretende é a produção de análises que sejam deformações o máximo autoconscientes.
[1] Professor da Universidade Federal de Campina Grande. Músico. Poeta.