Adriano de Leon[1]
Flávio, um jovem de 23 anos curte muito se exercitar em academias. Moreno, de seus 1,75m e 70 kg, a maioria de puro músculo. Frequenta a academia durante a semana e, como fez amizade com um dos proprietários, abre a academia aos domingos de manhã e à tarde para malhar.
Flávio faz parte de uma pesquisa sobre modelos de corpos masculinos, a qual tomou lugar numa academia de um bairro de classe média da cidade de João Pessoa, Paraíba, durante o ano de 2018 até meados de 2019.
A pesquisa consistia numa etnografia em ambientes fechados de academias de ginástica, cujo objetivo era analisar os percursos de construção de uma corporalidade masculina no exercício das atividades proporcionadas pelas academias pesquisadas. Flávio foi um dos nossos informantes.
Flávio relata que sempre foi um menino franzino. Segundo filho de três, sendo o mais velho um capitão do exército (como o pai) e a mais nova uma fisioterapeuta. Ele nasceu “de um erro de tabelinha” que, segundo seus relatos, lhe fora dito pela mãe. Durante a gestação, o pai saiu de casa acusando a mãe por ter lhe aplicado o golpe da barriga. Depois de quase seis meses, o pai volta à casa e não reconhece Flávio como filho. Dedica-se totalmente ao mais velho e trata a caçula como “minha princesinha”. A infância de Flávio foi de uma criança isolada da família. Queria ir aos programas com o pai e o irmão, mas eles nunca o chamavam, alegando que ele não aguentaria. Aos 16 anos, Flávio se apaixona, mas acha que não foi correspondido por ser um “cara fraco”. Então, já no ensino médio, conhece Gil que lhe leva para uma academia do bairro.
Na academia ele se encanta com a fábrica de sonhos de um corpo perfeito. Logo é apresentando às “bombas”, apelido de esteroides anabolizantes, proibidos de comercialização e uso. Começa usando Durateston, ADE e Deca-Durabolin, receitados por seu amigo Gil e vendidos na academia de forma clandestina. Depois, um dos professores recomenda o hormônio do crescimento e testosterona. Flávio usou todos e conseguiu em alguns meses ficar “enorme”.
O uso de anabolizantes gera efeitos colaterais, tanto em homens e mulheres, como: aumento de acnes, queda do cabelo, distúrbios da função do fígado, tumores no fígado, explosões de ira ou comportamento agressivo, paranoia, alucinações, psicoses, coágulos de sangue, retenção de líquido no organismo, aumento da pressão arterial e risco de adquirir doenças transmissíveis (AIDS, Hepatite). Nos homens, o excesso de anabolizantes pode causar aparecimento de mamas, redução dos testículos, diminuição da contagem dos espermatozoides e calvície[2].
Há em Flávio uma busca de um Eu Ideal que ele busca em elementos fálicos: os halteres, as máquinas, as roupas da marca Bad Boy e seu próprio corpo. Em se tratando do corpo, Flávio diz:
As pessoas me vêm grandão, bombado. Mas eu não. Pra mim falta sempre algo. Olho meus bíceps, minha barriga trincada, mas acho que minhas panturrilhas ainda são pequenas.
Eu pergunto sobre a infância dele. As memórias são confusas, mas há algo bem preciso: ele acha que foi o culpado pela saída do pai. Esse lugar não pôde ser ocupado pela mãe que deprimiu e deixou Flávio aos cuidados de uma tia avó, vizinha. Eram memórias que remetiam ao imperfeito, ao incompleto, ao faltoso. Assim, todas as identificações presentes nesse momento remeterão ao narcisismo primário, à onipotência e à perfeição.
Hoje quase me sinto perfeito. Quero é ficar enorme mesmo. Por isso é puxar ferro todo dia. Tem feriado não.
A imagem para Flávio é um fator muito importante. Durante a etnografia, o acompanhando na academia, ele muitas vezes falava comigo enquanto se olhava no espelho. Segundo ele, “era preciso pra não fazer exercícios errados”. Mas havia mais naquele olhar além da busca de um acerto nos exercícios. Havia um deslumbramento de si, envolto numa insatisfação com sua própria imagem.
Flávio era um sujeito preso ao seu sintoma: a busca do corpo perfeito. Os espelhos cativaram sua imagem, como a madrasta de Branca de Neve ao consultar seu espelho e esperar sempre dele uma afirmativa para sua beleza superior a todas outras.
Eu respiro academia quase 80% do meu tempo. Já faltei trabalho pra ir malhar. O que vale mais a pena na minha vida é minha aparência, minha saúde, minha dieta. Quero me sentir bem diante do espelho. Mas parece que eles não me ajudam. Sempre tem algo que precisa ser retocado.
Flávio me relatava isso, sempre olhando para seu bíceps numa camisa tamanho P. Às vezes zombava de mim, sempre me aconselhando a malhar, a “crescer, sem precisar ficar enorme”.
Havia uma alegria nesta descrição do corpo. Quando eu perguntei o que mudou quando ele conseguiu este corpo, ele falou:
Foi como se eu tivesse nascido de novo. Mandei meu pai e meu irmão se fuderem, pois nenhum deles chegava nem aos meus pés na musculatura. Eles me criticavam, mas eu sei que era inveja. Aos 18 eu saí de casa e fui dividir apartamento com colegas da Universidade. Comecei a estudar Educação Física e me dei bem. Hoje sou personal e um modelo pros meus alunos.
Lembrei-me do conto do patinho feio que se descobriu um cisne e abandonou o bando dos patos para brilhar com suas novas plumas. O indivíduo com sintomas vigoréxicos fica preso na dimensão do narcisismo, pois é a partir desta posição que ele se sente amado e reconhecido pelos outros.
Falando em vigorexia, este tema apareceu nas nossas conversas quando Flávio me falou que um psiquiatra o diagnosticou como vigoréxico. Ele buscou o médico para tratar de problemas de metabolismo causados pelo tratamento com testosterona que acabou prejudicando o fígado e lhe tirou o sono. Flávio tomou este diagnóstico como um troféu, como um adjetivo: Flávio, o vigoréxico. Não percebia isso como doença, nem transtorno, mas como glória. “É uma doença de quem busca saúde, professor”, me dizia ele quando as questões giravam em torno do tema corpo e saúde.
A travessia de Flávio na adolescência passou pela superação de sua incompletude: o raquítico passou a ser o bombado. Esta travessia tem a ver com os traços de nossa cultura narcisista, do valor que os homens recortam e colam nos seus corpos através das tecnologias, de exercícios, de drogas químicas. Faz parte do que S. Freud denominou como mal estar da nossa civilização. Os espelhos, gritavam para Flávio: seja enorme! Seja forte e serás amado!
Pensando na passagem do sujeito diante da sexuação, Flávio, como qualquer menino, ficará na posição de abandonar-se como falo para ter o falo. Abandonado por seu pai e por seu irmão, renegado pela sua mãe, ele tenta se identificar com aquele que detém o falo: o seu pai. As imagens que aparecem sobre o significante pai são ligadas ao salvador, às vezes ao rival, ao herói, mas geralmente vivida de forma passiva. Flávio buscará o significante pai e não o achará. Vive uma fase de reclusão até encontrar um significante poderoso para sua vida, que dará todo o sentido da existência para ele: o imaginário de um corpo-outro, de um corpo que ele almeja e que, talvez, um dia terá. Ele buscará este significante nas coisas do mundo, no que poderemos chamar de mundo cultural, o mundo fabricado pelos desejos e fabricante de outros tantos desejos e subjetividades. Esta máquina desejante dará a Flávio o substrato ausente, que reaparecerá sob a forma narcísica de culto ao corpo.
O mundo do consumo permitirá a Flávio ser reconhecido por seus atributos fálicos que, por sua vez, será alimentado com objetos que, de certa forma, sustentem este ideal de perfeição. A sua identificação fálica se inscreve no imaginário da musculatura, deste corpo completo, mas sempre por se fazer.
No começo eu pensei que estava me torneando pra meninas. Hoje não. Faço por mim mesmo. É saúde, é beleza, é presença. Veja professor, se a gente sair juntos é claro que as meninas vão olhar mais pra mim (risos). Não é porque eu sou mais novo, e sim porque eu sou mais forte, tenho presença. Você deveria pensar mais no seu corpo, homem. Deixar estes livros e vir pra cá pegar no pesado.
Ser visto, então, para Flávio passou a ser um imperativo. Apesar de “enorme”, Flávio me falou que não para muito tempo nos relacionamentos. “As meninas não aguentam que eu divida minha vida com elas e com a academia.” Desta maneira, ser visto passa a compor um roteiro no Ideal do Eu dele. Forma-se, segundo Lacan, um campo especular, chamado por ele de campo escópico, fortemente investido de imagens. O olhar não é só mais um sentido, mas um delineamento da libido. Não apenas se vê, mas se percebe pelo olhar algo que tenta preencher uma falta. As imagens evocadas passam pelas escolhas de objetos midiáticos, modelos corporais, esportes, dietas, ícones.
Fora malhar e fazer dieta, o que mais lhe inspira? Pergunto eu. Flávio responde:
Quando saio da academia parece que a academia não saiu de mim. Gosto de lojas de esportes e suplementos; curto vídeos sobre musculação; tenho aplicativos para dieta e tomar água. Meu sonho é ter uma casa com uma academia. Acordar e fazer exercícios e atender os alunos lá mesmo. Não sou de beber, me faz mal, além de ser calórico. A pior fase da minha vida foi quando quebrei meu pé e fiquei quase dois meses sem poder malhar. Cara, que tragédia. Não a do meu pé, mas eu ver minha musculatura atrofiando cada dia. Mesmo com o pé lascado, eu pegava peso pra garantir pelo menos braços e abdômen no lugar.
Eu: que lugar?
Flávio: Abdômen trincado e braços inchados!
O imaginário é um campo das identificações com o outro. Esta identificação imaginária é especular. Me vejo com o olhar que os outros têm sobre mim, além do olhar do campo da cultura material, daquilo que se convencionou chamar de corpo definido. Este é o corpo desenhado pelo traço de um escultor, Michelangelo. Mais que Da Vinci, Michelangelo deu tridimensionalidade aos corpos por ele pintados. Uma volta ao culto da corporalidade greco-romana. Mas o que eram corpos para a guerra se transformou em corpos para o uso hedonista na Modernidade. A partir dos anos 1980, deu-se o fenômeno fitness no mundo ocidental com a difusão em larga escala de academias de ginástica. O que se vendia como saúde era verdadeiramente um apelo ao corpo belo, esculpido tecnologicamente não para a guerra, mas para o consumo. Corpos a serem consumidos pela moda, pela mídia, na indústria do entretenimento e nos espaços de relacionamentos afetivos e sexuais.
Eu: você se acha gostoso?
Flávio (entre risos): dizem, né? Mas eu me acho sim. Eu me comeria, hahahaha. Mas sem brincadeira, me acho saudável e sei que sou olhado.
Eu: olhado e desejado?
Flávio: é… eu levo cantadas sim. Mas o que me interessa mesmo é como eu me vejo. Tive uma namorada que dizia que eu era paranoico com meu corpo. Que quando a gente ia transar eu olhava mais pro meu corpo que pro dela…
Eu: e isso era verdade?
Flávio: (muitos risos) cara, eu fui pra um motel com ela, daqueles que tem espelho por todo canto e até no teto. De repente ela ficou por cima de mim e eu me peguei olhando pra meus braços, pra minhas pernas. Tu acredita que fiquei mais excitado. Eu acho que isso é doença…
Eu: vigorexia?
Flávio: sei lá. Mas acho que é porque eu preciso saber que tô bem, sabe? Que meu corpo tá em ordem. Que sou enorme. Que não sou aquele franzino que eu era quando tava na casa dos meus pais.
Aparece nas falas de Flávio o significante desempenho como algo precioso para ele. É o desempenho, a alta performance, que escamoteiam a castração sofrida e agora abafada pelo vigor, saúde, um certo hedonismo em forma de alto desempenho.
No entanto, nada daquilo parecia satisfazer Flávio. Suas demandas não eram para os outros, mas para si mesmo. Quando ele falava, para mim aparecia a imagem de um saltador olímpico que, a cada salto bem sucedido, tem que se esforçar mais, pois o sarrafo fica mais alto a cada tentativa. Algo da ordem do inalcançável.
Numa das conversas entre treinos, na cantina, Flávio me falou: Professor, eu me sinto culpado quando falho comigo. Quando tenho coisas pra fazer que me impedem de malhar.
Eu: gostaria de saber mais sobre este sentimento de culpa…
Flávio: é como se papai me mandasse fazer algo, tipo uma missão, sabe? E eu simplesmente não pude cumprir… Como se eu tivesse devendo algo, tendo que abandonar meus treinos por coisas que têm que ser feitas como trabalhos, provas, coisas que não digam respeito aos treinos. Por isso que gosto de ser personal. Porque eu não fico olhando o cara treinar; eu treino junto. Insisto para que meus alunos se superem. Pra mim a falta é um desastre.
Eu: que falta?
Flávio: não é a deles, pois tem uns merdinhas que não querem sair deste lugar do fracasso. Eu me chateio com as minhas faltas, quando eu não posso ou não consigo chegar lá.
Sem dúvida, é com a falta que o indivíduo com sintomas vigoréxicos busca não se deparar. A busca de um corpo “enorme” é uma estratégia para manter o imaginário da falta longe de si e do outro.
Flávio me contou, certa vez, que foi a uma festinha com amigos e que um deles, em tom de piada, beliscou as ancas dele como se fosse um adipômetro. Foi o suficiente para a festa se acabar para ele. Subiu na moto, deixou a namorada com os amigos e foi para casa de um amigo que tinha academia malhar por horas.
Noutra situação, um dos informantes me falou junto a Flávio que a musculação exagerada e o uso de bombas diminuía o tamanho do pênis.
Eu: e isso é verdade mesmo?
Flávio: é sim. O meu mesmo diminuiu. Meu saco ficou menor e o pau também. Mas é um mal menor diante do que eu ganhei. E as meninas nunca reclamaram.
Eu: os produtos mexem também com seu tesão?
Flávio: no meu caso fiquei sem potência por três meses. Mas fui a um médico e ele me disse que era o hormônio de crescimento. Parei de tomar e voltou. Acidentes de percurso (risos). Mas o que vale mesmo é que todo mundo me vê como um Hércules.
O corpo “enorme” é o corpo imaginário que seria ofertado para satisfação do outro, mas que na verdade marca a falta de si. Nesta conversa Flávio sempre justificava ao final das suas falas que eram perdas menores do que os ganhos. Falava de si como um corpo entumecido como um pênis, mas que ao contrário deste não detumescia. Está aí o verdadeiro falo, nunca castrado.
Houve também relatos de momentos de agressividade em face ao uso exagerado da testosterona. Mas Flávio achava que isto fazia parte do pacote de benesses, pois assim ele se assemelhava ao desejo do pai de ter um filho que, se não quis ser militar, poderia se apresentar com um corpo militarizado.
Freud já havia trabalhado com esta sensação da imagem do maior na comparação de si no pequeno Hans. Os cavalos, a locomotiva, os animais do zoológico sempre maiores que ele. Depois a percepção que o “faz-pipi” dos outros também seria maior que o dele. Isto remete às perguntas do vigoréxico: será que existe alguém maior do que eu? Será que sou grande o suficiente?
Na comparação com meu irmão que é do exército, hoje vejo ele como um graveto. Meu pai também. Às vezes, professor, chego a sonhar batendo neles, deixando eles sangrando no chão e me pedindo ajuda. Nas raras vezes que vou em casa, meu pai sempre faz questão de exaltar a inteligência do meu irmão. Tanta inteligência pra nada. Um capitãozinho do exército que não aguenta 3 horas de batalha, de treino. Mas minha irmã me dá força, me ensina dicas de postura, dicas de coluna e pós-treino. Me admira e sempre quer me apresentar às amigas. Do meu pai não espero nada, a não ser as patadas.
Eu pergunto o que ele esperava do pai:
Sei lá. Que ele me reconhecesse como homem mesmo. Mesmo tendo este corpão, acho que ele ainda me vê como aquele menino franzino. É muita má vontade. (Nesta hora ele chora diante de mim). Ele nunca gostou de mim e nem vai gostar. Eu posso morrer de malhar que ele não tá nem aí. Sempre arranja algo pra me por pra baixo, pra me criticar. Eu queria é ter um pai assim como você, que me acompanha nos treinos, que conversa comigo. Eu me sinto importante lhe ajudando na sua pesquisa.
Flávio malha no seu próprio sintoma: o corpo inacabado. O corpo-falo dá lastro ao imaginário. Poderíamos, então, ter um simbólico que possibilitasse a completude do corpo via significantes, mas o imaginário se revela originalmente faltoso, não possibilitando que o simbólico realize esta completude. Desta maneira, resta um resíduo de incompletude que retorna continuamente. É o que Lacan denomina Real. Flávio, assim, tenta tamponar este furo com a malhação, este objeto a, o objeto mais-de-gozar.
Ainda hoje eu me olho no espelho e me vejo pequeno e fraco, muitas vezes. Uma namorada me chamava de doido, dizia que eu queria ser um gigante. Depois eu vou lhe mostrar um caderno que tenho e que eu anotava minhas medidas de manhã é à noite durante dois anos. Chegou um momento em que eu me estabilizei nas medidas e fiquei bem noiado. Parei de crescer, mesmo com mais intensidade nos pesos. Isso pra mim é muito foda…
A angústia toma conta de Flávio na sua busca por um corpo enorme. É uma imagem que gera angústia pelo fato dele se oferecer ao outro sempre no lugar de menor. Esta angústia assinala em Flávio o lugar da sua falta. Muitas vezes ele me relatou que deixou de ir a eventos sociais por não se sentir suficientemente “grande”. Percebo nele um grande culto ao seu sintoma. Flávio buscava incessantemente tamponar sua falta pela saturação erótica sobre sua superfície corporal. A aposta no corpo enorme advinha pela sua adicção à academia, característica dos vigoréxicos.
Eu sei que você e a maioria das pessoas pensam que eu estou exagerando, que já tá bom meu corpo. Uma coisa é o que vocês veem, outra coisa o que eu sinto. Vocês não conseguem ver as falhas, mas eu sei onde elas estão e vou buscando consertar cada uma.
Há em Flávio uma dissimetria na qual o sujeito comparece não como sujeito da percepção, mas como sujeito do desejo. Enquanto sujeito da percepção não dividido, ele deveria ser capaz de enxergar a enorme forma muscular, no entanto esta fica subsumida pelo sujeito do desejo, por se achar ainda insuficientemente grande. Portanto, se o desejo é sempre insatisfeito, resta a insatisfação em relação à própria imagem.
Cresça mais! Goze mais! É este imperativo que é ouvido por Flávio diante da sua imagem. A forma deste gozo é auto-erótica, como se a malhação trouxesse para ela as mais excitantes sensações.
Já deixei de transar pra vir pra academia. Tenho vergonha de dizer não. Quando estou só (aos domingos) eu já cheguei a ficar de pau duro só de fazer supino. Toda vez que malho, chego em casa e bato uma. Não penso em ninguém. Isso é loucura, né?
Nos relatos de Flávio há uma insuficiência. Há um lapso que ele não consegue descrever. São valores que nunca se exaurem, pois há sempre um deslize em forma de perda de gozo que o faz se julgar sempre aquém do ideal. Uma imagem distorcida que se torna desqualificada por ele mesmo. Um Eu Ideal nunca possível, como se ele corresse diante de um carro cuja traseira é um espelho: quanto mais ele corre, mais o carro acelera, de modo de o esforço em alcançar esta imagem é impossível.
Eu sou um cara de rotina. Por isso me dou bem como personal. Não atraso, conheço os clientes, sei de tudo sobre as rotinas deles e funciono como um robô. Levo cantada de mulheres e até de homens, mas eu nem ligo. Nada me tira dos trilhos. Acordar cedo, tomar um shake de proteína, ir pra academia, atender clientes, voltar pra academia e ir dormir cedo. Quem quiser conviver comigo que entre nesta agenda.
Flávio segue uma rotina obsessiva. Para um jovem como ele, não há momento para descontração ou lazer. As raras namoradas eram também do mundo fitness. Uma vida de rituais, na qual o acaso não tem vez. Como teorizou Freud, há na obsessão um perigo iminente de ver o conjunto da tensão sexual transformar-se em recriminação. Ao invés de relaxar com as tarefas, o obsessivo torna estas rotinas atos fatigantes ou quase insolúveis.
Fui pra uma praia com uma namorada. Aí ela ficou olhando pra uns caras. Tinha uns dois que eram bem maiores que eu. Eu cismei e perguntei se ela achava que eles eram maiores que eu. Ela me disse justamente o contrário: eu era bem maior que eles. Não me convenceu. Ela queria me agradar, mas no fundo ela achava que eles eram maiores. A partir disso, todo mané que eu olhava parecia ser maior que eu, mesmos os magros. Fiquei puto, não com ela, mas comigo mesmo. De noite, na transa, eu imaginei ela transando com eles, mas isso me deixou excitado.
É de se notar que a irritação de Flávio não se deu por ciúme. Na verdade, ele não estava nem aí com a namorada. O que o incomodou foi a comparação que ele mesmo estabeleceu entre os outros homens e ele. A posição de voyeur não o incomodou, porque ele viu sua falta no corpo dos outros homens. A distorção é que isto foi visto mesmo nos homens magros. O importante era se diminuir para conseguir se fazer em seu sintoma: eu sou menos!
Assim que cheguei de viagem, fui logo malhar. Sem intervalo. Meu amigo que estuda fisiculturismo me falou que o descanso faz o músculo crescer. Mas descansar pra mim é perder tempo. Arrombei meu ombro nesse dia, mas valeu a pena me ver todo enorme. A merda é ter que conviver com isso.
A perda de massa muscular para um vigoréxico é um fantasma que sonda sua vida fora da academia. Flávio começou a ficar obsessivo por dietas, por aditivos químicos de performance de ganho muscular que chegaram a lhe comprometer a vesícula biliar. Segundo seus relatos, um médico o aconselhou a parar de tomar proteínas sintéticas depois que ele desenvolveu cálculos na vesícula. Ele não atendeu aos aconselhamentos e teve que retirar cirurgicamente a vesícula.
Eu: e depois da cirurgia, você parou com os suplementos?
Flávio: dei um tempinho. Mas eu li muito sobre a vesícula. Como eu não como gordura, ela não vai me fazer muita falta. E como foi videolaparoscopia, voltei a malhar depois de uma semana!
Negacionismo. Flávio negava tudo o que pudesse arranhar sua imagem. A própria volta à academia foi um risco. Mas o vigoréxico lida com os riscos calculados. Pensa que sabe até onde pode fazer uso de anabolizantes, suplementos, dietas e exercícios. Flávio, como educador físico, selecionava os discursos que corroborassem com suas ideias acerca do corpo saudável. Discursos que tamponavam a falta e ampliavam seu gozo. Sua imagem de si era a imagem que tinha de seu corpo.
Flávio, não raramente, me contava de seus sonhos. Sonhava com duelos intermináveis, nos quais ele sempre fracassava. Nestes sonhos, ele buscava proteger uma mulher, cujo rosto ele não via, e combater dragões.
A fragilidade que aparecia nos sonhos dele eram não somente sua própria fragilidade, como a de sua mãe, cujo abandono do pai depois que ele nasceu a levou a uma profunda melancolia. Os dragões eram os “maiores”. Seres “enormes” e devoradores, cujo elemento fogo poderia aniquilá-lo. Os dragões de Flávio tinham brasões colados ao seu peito, o que me remeteu a ideia das efígies militares de seu pai e irmão. O dragão que o ameaçava de castração, de separação da mulher frágil. Seus relatos eram sempre acompanhados de grande angústia em relação a estas perdas, muitas delas inconscientes.
Flávio me relatou, num encontro muito descontraído numa loja de açaí, que teve um grande amor. Apaixonou-se de verdade. “Eu lambia o chão que ela pisava, cara!” Entre uma colher e outra de açaí com whey protein, Flávio me falou que ela rompeu com ele por causa da academia. Embora eles tenham se conhecido na academia, parece que ela “se sentiu de fora de minha rotina. Ela não entendeu que eu precisava muito ir pra academia todo dia, porque isso faz parte do meu trabalho.” Ela o achou inflexível, pois também era personal e tinha sempre tempo para ele, para diversão, viagens, baladas.
Uma menina maneira, mas fraca, sabe? Saí com ela e ela encheu a cara, pode? Eu falando feito um besta que o álcool consome massa muscular, que ela tava comendo besteira, muita caloria e ia ficar gorda. Mas o motivo que eu acabei foi porque eu não via ela me achando enorme. Tanto fazia se eu saísse de camisa de manga ou de camiseta regata. Acho que ela não via minha forma física. Tão sem noção que me deu uma camisa de surfista G que quando vesti escondeu meu corpo quase todo.
O corpo de Flávio era dele, mas era também um corpo de uma sociedade de consumo hedonista. Nessa linha de pensar a sociedade capitalista e seus ideais estéticos de padronização dos corpos, JJ. Courtine denuncia a sociedade do consumo como mantenedora do corpo musculoso, por sua vez, respaldado e montado nas academias, dietas e drogas de performance. Assim, cria-se um cenário que um não sarado é uma figura praticamente deformada. A sociedade de consumo cria desejos por desejos.
O desejo é um movimento que busca um objeto que provocará sua própria anulação – objeto a – causa do desejo, mas também promessa de reencontro com o gozo. Entretanto, a referida busca sempre redunda em fracasso, pois o objeto é perdido, logo, impossível.
O corpo possui uma dimensão imaginária tal qual um revestimento, uma dimensão simbólica e, finalmente uma para além de quaisquer descrições: a dimensão real. Como na fábula A Roupa Nova do Rei, de Hans Christian Andersen, dois estelionatários chegam a um reino prometendo ao rei a roupa mais bela de todas que já vestiu. Munem-se de tesouras, agulhas e apetrechos de costura para confeccionar uma roupa com um tecido jamais visto. Na verdade, não havia tecido algum. Depois de pronta, o rei desfila nu em cortejo, até que uma criança grita: o rei está nu! O imaginário seria então o que se pensava que era a roupa do rei. O simbólico, o que era dito sobre esta roupa. O real, o que não poderia ser simbolizado, o que está fora da linguagem, a ilusão de estar vestido.
E para além do revestimento simbólico do corpo situa-se a dimensão do real, que por sua vez escapa às regras de ordenamento do campo de sentido linguístico, portanto impossível de ser simbolizado. O real também é o que caracteriza o chamado objeto a, quer dizer, a dimensão de causa do desejo no ser humano, sendo sua busca sempre uma tentativa de reencontro fracassado, que culmina na sensação de vazio e de angústia. Para Flávio, havia um corpo incapaz de ser descrito, de ser simbolizado ou interpretado: um corpo para além do corpo. Sua malhação era o sinal da angústia e sua busca incessante por algo que ele pensa ser um corpo enorme é sua experiência de gozo, do que não cessa nunca, do que não tem sossego, nem nunca terá.
Às vezes Flávio me escreve, sempre atento a uma possível adesão minha a uma academia de ginástica. Continua enchendo suas redes sociais de fotos de seu corpo “enorme”. Diante do seu desamparo, qualquer coisa que venha em socorro daquele Flávio criança se configura como algo importante. Essa “coisa” perdida pode vir a ser encarnada pelos mais diversos objetos ao longo da vida, sendo relançada enquanto causa do desejo. Flávio pensa que encontrou esta “coisa”, porém cada encontro com o objeto desvela um desencontro, um hiato que será tamponado com as práticas para um corpo perfeito.
Flávio busca uma coisa (das Ding) que nem ele mesmo sabe o que é. Para entendermos melhor isto, Lacan denominou esta “coisa perdida” de objeto a. Num mundo imaginário, este objeto a poderia ser representado por uma fascinação com uma imagem que captura o sujeito, como um corpo perfeito num outdoor, uma pessoa, uma obra de arte. No registro do campo simbólico, este objeto a está encarnado dos mais diversos significantes, sempre fálicos, registros da falta, como “enorme”, “gigante”, “maior”. No campo do real, o objeto a diz respeito ao furo, ao impronunciável, às bordas e contornos por onde se inaugura o inconsciente.
Lacan confere um novo estatuto a esse objeto ao defini-lo como causa do desejo, enfatizando que, se há um sujeito desejante, é porque há no coração de sua subjetividade um vazio fundamental, que move, sustenta e relança o desejo, como uma catapulta. O objeto a é o retrato da falta, daí que ele causa o desejo.
A cadeia de repetição nas falas de Flávio funcionava como uma metonímia, um refrão que se repete e faz os significantes circularem. Ele elege seu próprio corpo como este Bolero de Ravel que parece nunca cessar. Para Flávio, o corpo desejado ainda não é aquele que tem, mas um corpo possível cuja forma ele ainda não percebe. E o mercado dos desejos fornecem a ele este mais-de-gozar, sob a forma de suplementos, exercícios, esteroides e toda uma sorte de deslumbres infinitos. O consumo apresenta a falta ao sujeito, que passa a gozar de não ter algo.
Assim, quando Flávio se olha diante do espelho, ele sente um misto de satisfação por ter aquele corpo “enorme”, mas sempre parcial, uma satisfação não-toda. A sombra de um corpo maior que o dele o assola e o arremete ao ritornelo de um corpo perfeito.
Para escrever este texto eu me inspirei nos seguintes autores e suas geniais ideias:
Denise LACHAUD,. O inferno do dever: o discurso do obsessivo.
Charles MELMAN,. Novos estudos sobre a histeria.
______. A neurose obsessiva.
______. O homem sem gravidade, gozar a qualquer preço.
Jacques LACAN,. O Seminário livro 1 – “Os escritos técnicos de Freud
______. O Seminário livro 2 – “O Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise”.
______. O Seminário livro 4 – “A relação de objeto”
Sigmund FREUD. “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise”. Conferência XXIII: “Os Caminhos na Formação dos Sintomas”
Jean-Jacques COURTINE. Os stakhanovistas do narcisismo – body-building e puritanismo ostentatório na cultura americana do corpo, que é um dos capítulos do livro: Políticas do corpo, organizado por Denise Bernuzzi de SANT’ANNA.
[1] Sou professor da UFPB. Leciono no Curso de Psicologia. Este texto pode ser copiado em a mínima necessidade de me citar.
[2] https://www.endocrino.org.br/10-coisas-que-voce-precisa-saber-sobre-uso-de-anabolizantes