Vidas Desperdiçadas[1]
Mónica Franch[2]
…da cultura do próprio tempo e da própria classe não se sai
a não ser para entrar no delírio e na ausência de comunicação.
Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes[3]
Num texto traduzido ao espanhol sob o título “Para que una buena costumbre no corrompa al mundo” e publicado como um dos prefácios de edição espanhola do clássico Coming of age in Samoa[4], Margaret Mead, fazendo jus a seu reconhecido estilo bumerangue, questiona o que a sociedade ocidental teria a aprender do estudo dos modos de vida de cinco povos primitivos que foram objeto de suas pesquisas no período de 1925 a 1939 – os arapesh, mungudomor, tchambuli, samoanos e manus. À ocasião, perguntava-se a autora quais seriam as sociedades que conseguiam tornar seus indivíduos mais felizes, se aquelas mais simples em que um único padrão de comportamento e personalidade era admitido para todos os participantes ou se seriam as nossas sociedades complexas, marcadas por uma maior tolerância frente à diversidade de modos mas que, em contrapartida, provocam mais angústias e incertezas entre seus membros. Mead apostava então pelo aprofundamento e melhora da nossa heterogeneidade que, quando comparada aos sistemas homogêneos, diminuía o “desperdício de vidas”. Ou seja, uma sociedade que apenas permite e encoraja uma única forma de ser condena à inviabilidade aqueles indivíduos cujos dons “naturais” predispõem em outra direção. Na agressiva cultura arapesh, por mencionar um exemplo escolhido pela autora, pessoas mais afetivas e frágeis são profundamente infelizes pois sua cultura não lhes reserva lugar algum. Quase cinquenta anos nos separam dessas reflexões e, no entanto, elas continuam nos levando a questionar a maneira pela qual nossas sociedades socializam seus novos membros e qual a felicidade que é possível obter em meio a sistemas que, por um lado, geram expectativas conflituosas e, por outro, tolhem capacidades apesar do discurso democrático e aberto com que nos definimos.
Fiquei pensando nessas questões porque ontem visitei uma família que mora numa de tantas comunidades da cidade do Recife. Conheço Lívia, Jorge e os três filhos do casal desde, no mínimo, 1996, quando as duas filhas mais jovens fizeram parte de um projeto da organização não governamental na qual eu trabalhava. Voltei em 1999, para realizar minha pesquisa de mestrado, ocasião em que tive o privilégio de ser aceita como uma amiga da família. Benedita, a filha do meio do casal, chamou minha atenção em seguida. De alguma forma, ela me escolheu como interlocutora, num daqueles processos transferenciais que tão bem conhecemos os antropólogos em campo. E como muitos antropólogos antes de mim já narraram, Benedita, meu primeiro ponto de ancoragem naquela comunidade, era um personagem até certo ponto outsider em seu próprio grupo social. Carregava um dos piores estigmas que nossa sociedade produz: ela era portadora de um transtorno mental. Eu não percebi isso de imediato. Apenas achei que ela era eufórica demais, vitalista demais para aquele ambiente meio apático que a rodeava. Cheia de sonhos, superou os limites de sua condição pela loucura, como outros fizeram através do estudo, do crime ou da sorte. Ela era tão inteira em suas aspirações que apenas quando a ouvi expor uma teoria segundo a qual o mundo nada mais era do que uma imagem ampliada do computador comecei a pensar que talvez Benedita tivesse cruzado a fronteira que separa os sãos dos alienados, e que quiçá andasse tateando por uma terra fértil, porém pantanosa, de delírios e extravagâncias.
As coisas não são fáceis para quem tem na família um ser diferente como Benedita. Lívia e Manoel peregrinaram atrás de tratamento e, o mais importante, atrás de respostas que lhes ajudassem a lidar com as peculiaridades de uma filha que, até então, sempre lhes encheu de orgulho. Benedita era inteligente, ajudava a família tomando conta da venda de que todos tiram o sustento, gostava de estudar, era uma jovem alegre, bonita e carinhosa, embora algo impulsiva. Quando começou a fazer estágio numa empresa municipal de informática, os pais já vislumbravam para ela o futuro brilhante que o irmão mais velho trilhou para si: uma carreira profissional, quem sabe complementada com estudos na universidade, e melhores condições de vida. Mas Benedita começou a ter problemas na empresa. Foi acusada injustamente de roubo, o que magoou sobremaneira toda a família. Segundo eu soube depois, a acusação pode ter sido motivada pelo envolvimento amoroso que a jovem teve com um dos técnicos da empresa, um homem mais velho e com dinheiro, por quem se apaixonou. Ingenuamente, Benedita pensou que seu amado abandonaria mulher e filhos para viverem juntos uma paixão que ela observava crescer sem freio dentro de si. Do seu curto romance, Benedita não guardou apenas a lembrança dolorida do desamor. Como quem, às escondidas, espreita pela fresta de uma porta entreaberta, a jovem vislumbrou imagens de um outro mundo até então oculto por trás das invisíveis barreiras da desigualdade. Viagens, restaurantes, motéis caros, tudo aquilo que o dinheiro compra se ofereceu aos olhos de Benedita, mostrando-lhe uma vida que, contrastada com a dureza da existência material na periferia, a levou a pensar que aquilo sim que era viver. Festa, aventura, romance. Como voltar às mesmas quatro paredes, uma vez o sonho termina? Benedita não conseguiu fazer a viagem de volta.
Passaram-se vários anos desde aquele primeiro surto. Seu corpo guarda a memória de tratamentos que a esticaram e afinaram inúmeras vezes. A família se acostumou a lidar com suas oscilações, a amá-la dessa nova maneira sempre imprevisível e misteriosa. Dois anos atrás precisaram interná-la pela primeira vez na história de sua doença. Sua filhinha Carla tinha apenas dois meses. Benedita sempre sonhou em ter uma filha. Porém, mais uma vez as circunstâncias apagaram o brilho de seu sonho. Conversávamos sobre isso ontem, sentadas no sofá da casa dos pais, onde ela voltou a morar desde o nascimento de Carla. “Você soube que eu fui internada?”, perguntou. Como não saber. Não se fala de outra coisa desde que retornei à comunidade, como se a loucura alheia ainda fosse uma salvaguarda para a própria sanidade. “E como foi isso?”, eu perguntei. “Foi ruim mas foi bom também”, ela disse, com um olhar que não escondia a evocação feliz de uma lembrança. “O que eu mais gostei foi da euforia, eu fiquei muito eufórica, eu fiz coisas que eram meus sonhos, que eu sempre quis fazer mas nunca pude”. “Que coisas, por exemplo?” “Eu acampei em Gaibu, com um hippie. Eu sempre sonhei em acampar numa praia. Teve uma vez que uns colegas meus foram acampar, eu pedi pra painho mas ele não deixou. E agora eu realizei meu sonho. É lindo acordar pela manhã e ver aquele mar todinho na sua frente!” Benedita sorria. Acampar na praia. O sonho dela era acampar na praia e precisou enlouquecer para realizá-lo. Como diria a velha e boa Margaret Mead, quantas vidas desperdiçadas!
[1] Não sei ao certo, mas a memória do meu computador me diz que escrevi este texto em 14 de agosto de 2010. Foi escrito de uma só sentada e permaneceu arquivado todos esses anos. Agradeço a Adriano de Leon a oportunidade de publicá-lo agora. Longa vida à Desqualificada!
[2] Programa de Pós-Graduação em Antropologia
UFPB
[3] GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 [1976], p.20.
[4] MEAD, Margaret. 1925-1939 Para que una buena costumbre no corrompa al mundo. In: Adolescencia y cultura en Samoa. Barcelona: Paidós, 1990 [1928], p.14-31.