“O Que Quer, o Que Pode Esta Língua?”

Tiago Castelo[1]

“Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã”
Língua – Caetano Veloso

“Língua”, música de Caetano Veloso, que intitula seu álbum de 2007, é feita de uma brincadeira com os sons, as palavras e seus sentidos para cantar sobre o que o título da música enuncia. É ainda mais: evocando o gosto (no sentido de paladar ou preferência?) pelo “roçar a língua de Luís de Camões”, Caetano traz na letra de sua música questões que tocam a diversidade da língua não apenas portuguesa, mas brasileira, “roçando” entre os versos as duas línguas, que embora tenham um mesmo nome, existem com marcas distintas.

A pergunta “o que pode esta língua?” é repetida no refrão, que se intercala entre imitações de sotaques, gírias e expressões de povos falantes de lugares diversos, além de Elza Soares, na gravação, fazendo uso de sua língua para ecoar seu timbre único, que relatou em entrevista ao programa Roda Viva de 09 de setembro de 2002 ter adquirido a partir do som que saía com a força usada para levantar latas d’água na cabeça aos 12 anos e que passou a usar desde então, registrando-o como sua marca: a singularidade que a língua expressa a partir de diferentes falantes que fazem uso dela.

É tomando de empréstimo essa pergunta, “o que pode esta língua?” que de modo breve irei tocar em questões acerca do conceito lacaniano de lalíngua.

A respeito do uso da língua enquanto órgão, já na primeira infância a criança a partir dela faz uso de sons, articulando-os sem que haja através deles um sentido: ela goza com a língua, ressoando com a voz sua libido, brincando com os sons, mesmo antes de fazer uso da linguagem. É o que podemos chamar de lalação. Basta observarmos um bebê em seu balbuciar, momento em que são experimentados sons, tons e reações. É dessa mesma natureza de extração de gozo através do uso da língua que Lacan irá criar o conceito de lalíngua (lalangue, nomeado a partir da palavra lalation), uma língua de gozo.

Em Conferência em Genebra sobre o sintoma, de forma bem humorada, Lacan pergunta “Como, até Freud, pôde-se desconhecer que essa gente, a qual se chama homens, mulheres, eventualmente, vive na tagarelice?”. Esse mesmo gozo tomado como tagarelice, antes chamado lalação, balbucio infantil, será tecido pelos significantes, que por sua vez ressoam no corpo, marcando-o de modo único para cada sujeito.

Há algo que ultrapassa a demanda que impulsiona a fala ao Outro, e a isso que ultrapassa é o que localizamos enquanto gozo, da qual a linguagem é seu aparelho. Se há demanda, ela é a de querer-gozar percorrido através do querer-dizer. Daí a fórmula lacaniana “Ali onde isso fala, isso goza”.

A entrada na linguagem impregna a espécie humana, atribuindo a ela uma espécie de sensibilidade. Podemos pensar isso a partir da brincadeira do “Fort-Da”, a qual Freud se refere em Além do Princípio do Prazer , narrando a cena em que seu neto, com um ano e meio, para suportar a ausência de sua mãe toma um carretel numa brincadeira de jogá-lo e puxá-lo de volta, acompanhados das palavras “fort” e “da”, ‘ir embora” e “ali”. Para Freud, a brincadeira representava simbolicamente a saída da mãe. Se pensarmos a partir de Lacan os efeitos da língua, podemos supor que as palavras é que servem de suporte para sustentar um jogo do qual o filho faz uso para dar conta da ausência de sua mãe. De fato, é necessária certa sensibilidade causada pela entrada na linguagem para uma criança com ela fazer tal operação.

 Com essa sensibilidade é também que vamos brincar com as palavras:  esse brincar nós atribuímos ao que Lacan disse serem os detritos que a linguagem a qual somos banhados. Por ilustração trouxemos Caetano brincando de forma fantástica com a língua para cantar “Língua”. Enganamo-nos se julgamos que é fazendo uso somente da gramática que Caetano constrói um complexo trocadilho de palavras e sentidos com sua composição musical. É antes fazendo uso do seu gozo particular com a língua que Caetano toma o que já funciona como palavra para montar sobre a gramática e fazer música.

No picadeiro da linguagem a lalíngua é o acrobata

Um outro exemplo interessante de uso da língua marca na história o teatro, que chama gramelô a língua que não tem sentido e é usada para, paradoxalmente, servir de comunicação entre os personagens interpretados. Inventada pela Commedia Dell’arte, como era conhecido um grupo de atores de rua do século XVI, o artifício criativo desse uso da língua serviu para resolver uma questão política que se fez instituída à época: em Paris os comediantes foram proibidos de usar palavras. Esta proibição veio como meio de censura às críticas tragicômicas que os atores da companhia faziam aos costumes da época, acompanhadas de mímicas e acrobacias circenses (SANTOS, 2015). A saída encontrada pelo grupo foi então “inventar” uma nova língua, desta vez uma que não tivesse sentido algum, materializando-se a partir dos sons que o corpo faz e sai pela boca, fonemas, fragmentos de outras línguas, sotaques, interjeições e palavras. Uma espécie mesma de lalação.

A genialidade da solução empreendida pela Commedia Dell’arte, o gramelô, faz paralelo ao que Lacan, em termos teóricos, diz do gozo que se extrai da língua e que se relaciona a pergunta que aqui trazemos feita por Caetano Veloso: “o que pode essa língua?”. Apenas resgatando o uso que o gozo faz da linguagem que se poderia fazer uma operação que se servisse da língua para a cena teatral do grupo dentro daquele contexto, fazendo daí surgir o gramelô, uma lalíngua acrobata, que salta sobre a lei, buscando um fim em seu próprio gozo.

O traumatismo da lalíngua

Tomando de uso uma noção da geologia, Miller (2012) faz uso do termo aluvião para dizer do que ocorre com o sujeito marcado pela lalíngua: aluviões são partículas de sedimentos, areia, argila, cascalhos, etc., provenientes de erosão recente, transportados e depositados por correntes de água. Somos sujeitos previamente banhados de linguagem que vem do Outro: nascemos em determinado contexto marcado por determinados códigos linguísticos em determinado país com determinado idioma, etc. Desse banho de linguagem, cada sujeito é marcado de modo completamente contingente pela lalíngua. (MONTEIRO, 2002) Esses aluviões deixam traços de afetação, que abrem a incidência da língua sobre o ser falante e sobre o seu corpo.

Todo saber é um saber articulado simbolicamente. Acontece que, como dito acima, somos marcados pela lalíngua, essa língua de gozo, que é prévia à comunicação e portanto não abarca sentidos e é ao mesmo tempo núcleo íntimo de nossa relação com a linguagem. Miller (2012), a respeito dela diz que é uma língua autista, “num sentido um pouco rápido do termo”, visto que não serve à comunicação, mas à pulsão, garantindo com isso o gozo.

Laurent, em seu artigo O trauma ao avesso,  nos ajudar a pensar o trauma em duas dimensões, o factual, acontecimento disruptivo, e o trauma estrutural, próprio de cada sujeito, tocante ao fazer com a língua. Resgatando Miller, trata o banho de linguagem referido à qual a criança é tomada como um parasita: ela está fora do sentido do vivente e se insere nele. Para sempre ele terá de lidar com esse estranho. Ela “é traumática porque comporta em seu centro uma não-relação”. O que entender a partir disso? Não temos a fórmula da complementaridade com o outro; em vez disso, temos a linguagem, afetada em cada sujeito de modo único.

Adiante aponta dois modos de abordar o trauma, pensado a partir das duas dimensões levantadas: o modo generalizado, orientado a partir dos manuais diagnósticos e mídias, e o modo particular, que se mostra no modo como cada sujeito, em sua singularidade, lida com o encontro traumático. Para esta segunda perspectiva, a primazia não está mais no que se diz genericamente sobre os acontecimentos traumáticos, o trauma sobre o sujeito, mas antes no que emerge a partir de sua fala, considerando seu traço de singularidade, o sujeito sobre o trauma.

Para ambas as faces, o trauma é o que escapa a qualquer programação. A partir disso, Laurent desenvolve seu artigo apontando o tratamento que se dá considerando por primazia o sujeito. A isso podemos atribuir ao que vimos sobre lalíngua, essa língua de gozo, concebida como “o que há de simbólico no real”. A linguagem como parasita é uma linguagem do real. Por não aprendermos as regras que formam o Outro social, resta-nos seguirmos as regras que aprendemos com os outros, cujos sentidos são inventados a partir do fora do sentido próprio do Outro. E o trauma, em seu caráter de disrupção, traz a tona a falta de sentido. Assim, depois de um trauma é preciso cada um inventar um Outro que foi perdido, e isso se dá criando um novo caminho causado por esse furo estrutural, traumático, dentro da linguagem. Esse caminho se faz pela via do que é mais singular no sujeito: sua construção fantasmática e seu sintoma.

A partir desse esquema, entende-se que o analista ocupa um lugar que, como sua função, ajuda o sujeito a reencontrar palavras depois do traumatismo. É uma função da qual, estando em funcionamento, “empuxa” a fala do paciente. Essa fala o analista aqui bem sabe que faz surgir o inconsciente à medida que emerge a ruptura do sentido. Laurent ainda alerta para o fato de que não se deve reduzir a análise a um mero “ajuste metafórico” ou um relato que vem no lugar daquilo que não tem sentido, pois o sentido sempre em algum ponto escapa, tentemos como pudermos tampona-lo.

O analista é aquele que sabe que a linguagem, “em seu fundo mais íntimo, permanece fora do sentido”, e que cada sujeito vira-se com ela. E assim, temos que o trauma, que se faz sempre inscrito onde não há relação sexual, é tido muito antes como um processo inerente à condição do falante do que como um fato.

Onde não há saber, resta-nos a invenção, e essa invenção não se fez senão como ressonância dos detritos, as aluviões que nos marcaram em nossa experiência com a linguagem. Não há paridade, relação sexual, já afirmou polemicamente Lacan. Resta-nos ao não saber da sexualidade a invenção.

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. Além do Princípio de prazer. In: _____. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud:conferências introdutórias sobre psicanálise. Direção de Tradução Jayme Salomão. 2. ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1976a, v.18, (1920-1922).

LACAN, Jacques. Conferência em Genebra sobre o sintoma. In Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, (23). São Paulo: Edições Eolia,  1998.

LAURENT, Eric. O trauma ao avesso. Revista Papéis de Psicanálise v.1. Minas GeraIs, 2004.

MILLER, Jacques-Alain.Monólogo da aparola. Opção lacaniana Online: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. Ano 3, n.º 9, nov. 2012.

MONTEIRO, Cleide Pereira. A noção de lalíngua: uma contribuição da psicanálise lacaniana à concepção de língua. Tese de doutorado, Universidade Federal da Paraíba, 2002.

SANTOS, Ivanildo Lubarino Piccoli dos. O Dueto Cômico: da Commedia dell’Arte ao Cavalo Marinho. Tese de doutorado: Universidade Estadual Paulista. São Paulo: 2015.


[1] Universidade Federal da Paraíba

Psicanalista