O corpo TRANS: entre a cruz da abjeção e espada da passabilidade

 Vanessa Belmiro dos Santos Meira[1]

 

O que é um corpo? O que pode ele? Qual a sua função? Se na tentativa de responder tais questões lançarmos mão de explicações mais simplistas, poderíamos nomeá-lo como a unidade mais básica e evidente da existência humana, e também não humana, e sua capacidade de instrumentalidade na relação com o mundo. Entretanto, como definir corpo para além da condição biológica, organizado fisiologicamente pela funcionalidade de componentes vitais, seus órgãos? É através de uma perspectiva sócio antropológica que buscaremos entendê-lo como um espaço que é socialmente construído e culturalmente influenciado, símbolo individual, mas interdependente das relações sociais coletivas. Na interação, o corpo assume a dupla função de produzir e de ser produzido pela correlação de forças existentes no mundo social.

David Le Breton (2012), apresentando a abordagem sociológica marxista sobre corpo, ao considerá-lo para além do ponto de vista fisiológico ou anatômico, mas “como uma forma moldada pela interação social” (p.16), é contrário à ideia do homem “produto” do corpo, e submisso à primazia do biológico, e por isso denuncia a unidade corporal como unicamente uma “descrição da pessoa, testemunha de defesa usual daquele que a encarna” (p.17). “Assim, o corpo não é somente uma coleção de órgãos, arranjados segundo leis de anatomia e da fisiologia. É, em primeiro lugar, uma estrutura simbólica, superfície de projeção passível de unir as mais variadas formas culturais” (p.29).

Partindo dessa proposição inicial, é possível perceber que existe entre o corpo e a sociedade uma estreita relação, onde os discursos sobre o que ele deve e o que ele pode possui uma ligação direta com os modelos estabelecidos ou considerados dentro de um conjunto de padrões de existência. Se ao vir ao mundo, o corpo é dotado de determinados predicados considerados “normais”, estaria em perfeita harmonia com o padrão socialmente determinado, e, portanto, autorizado a participação da vida coletiva. Ele pode e deve usufruir das oportunidades que o mundo lhe oferece. Se, entretanto, ele surgir com uma possível “falha” em seu funcionamento, e essa marca lhe acarretar um comprometimento, seja ele anatômico, ou de comportamento, seria melhor “protegê-lo”, “escondê-lo”, ou caberia dizer, privá-lo, que seria o mesmo que posicioná-lo em reclusão, pois assim não estaria execrado à vergonha, ao rechaçamento social, ou não comprometeria, de forma subversiva, a estabilidade de uma ordem ou estrutura normativa dominante.

A aparência inscrita na estrutura corporal dos sujeitos funciona como um guia que direcionará o seu comportamento. Como uma prisão, que exerce o controle total sobre o corpo encarcerado, o “corpo social” julga-se no poder de definir como deve ser o corpo biológico (obedecendo sua condição “natural”), e classificar o seu funcionamento, em diversos aspectos de seu modo de vida, seja através das normas morais e disciplinares, relativas à saúde e a estética até ao seu desejo e comportamento sexual.

Muito embora a existência da condição biológica seja inegável, o que se questiona é a elaboração do que é considerado “natural”, e, portanto, dotado de uma essência imutável e incapaz de ser questionado. A biologia não é o destino final. Alguns dos seus discursos supõem que o corpo expressa alguma verdade fundamental. A condição sexual ou morfologia corporal dos sujeitos não são fatores únicos e, portanto, determinantes na sua identidade. Neste sentido, essa demarcação discursiva é frequentemente utilizada no combate ao corpo diferente, fora do padrão, excêntrico, e que por isso deve ser abominado. “Esse conjunto de fórmulas é construído a partir de binarismos e de imposições que definem o que seria normal, correto, permitido, saudável, amparado por discursos científicos, religiosos, filosóficos. Tal conjunto é produzido nas instâncias produtoras de verdades” (León, 2012, p. 228).

Ao internalizar tais demarcações discursivas, e assumir as características físicas o sujeito termina por considerá-las como estruturantes para a formação de sua identidade, e essa concepção lhe servirá como recurso para a sua mobilidade social, permitindo transitar ou não em determinados espaços, ocupar posições, e até mesmo exercer funções privilegiadas de poder e de força. Ao pensá-lo dentro de uma determinada realidade cultural, é possível prever a sua participação social ao depender da condição de sexo, de gênero, de raça/etnia e de classe social. E muito embora algumas dessas condições sejam instáveis, e em alguns casos, exista a possibilidade de mobilidade, não é garantido o reconhecimento social, e, portanto, a legitimação dessa identidade.

Como afirma Hall (2012), na disputa pela identidade está envolvida uma disputa mais ampla por outros recursos simbólicos e materiais da sociedade. A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com relações de poder (p.81).

Então, o que pode um corpo, diante dessa forte tecnologia que é exercida sobre a a subjetividade do sujeito que o pertence? Onde (ou com quem) se encontra a capacidade de estremecer as estruturas discursivas eleitas como certezas e verdades enunciadas sobre ele? Ao refletir o corpo, numa perspectiva múltipla, resultante de movimentos, os franceses Deleuze e Guattarri (1947) propõem pensar na criação de um corpo sem órgãos, anunciando a capacidade de elaboração dessa unidade a partir da não estratificação causada pelo organismo, considerado como uma estrutura que pesa sobre o corpo, que tem o poder de sujeitá-lo através significância, que cola na alma, e da subjetivação, que fixa o corpo a uma realidade dominante (p.21). A proposta dos filósofos encontra-se numa relação experimental com esses extratos, através de uma relação meticulosa, capaz de liberar as linhas de fuga, fazer passar e fugir os fluxos conjugados, desprender intensidades contínuas para se atingir um corpo sem órgãos” (p.22). Seria essa uma utopia? Ou haveria a possibilidade de libertação das amarras sociais sobre os corpos dos sujeitos?

Mas, se por um lado compreendemos o corpo como um produto material e simbólico da cultura e da sociedade, é sabido que muitas referências teóricas buscaram na sexualidade chaves explicativas para justificar a composição da identidade dos sujeitos, elegendo a diferenciação sexual (ser macho/ser fêmea) como elemento de distinção material suficiente e capaz de defini-los. Ao situar os estudos sobre o corpo, e o poder exercido sobre ele, Michel Foucault observou na sexualidade um dispositivo político, que através de discursos de instituições e suas proposições filosóficas e morais, e enunciados científicos sobre os corpos, exercem controle de seus desejos. Todos os esforços estão voltados para uma tecnologia de controle que mantenha vigilância sobre o corpo e sobre sua sexualidade. “Os mecanismos do poder se dirigem ao corpo (…) o poder fala da sexualidade e para a sexualidade; quanto a esta, não é marca ou símbolo, é objeto e alvo (…) o poder a esboça, suscita-a e dela se serve como um sentido proliferante de que sempre é preciso retomar o controle para que não escape (1988, p. 138).

A institucionalização da heterossexualidade funcionou como um mecanismo de controle sobre os corpos. Entre os séculos XIX e século XX houve um grande esforço da ciência, sobretudo de instituições com discursos medico- morais, de controlar os tipos e formas de comportamento e da identidade sexuais, passando a nomear a homossexualidade como anormalidade ou perversão. Entretanto, a própria noção da heterossexualidade como uma instituição é também um fenômeno historicamente cambiante. Ela foi institucionalizada como “compulsória” por algumas autoras feministas, na tentativa inclusive de justificar a relação desigual entre homens e mulheres, o que significa dizer que sexualidade e poder estão fortemente ligados.

Se durante os últimos séculos as relações cambiantes de poder em torno da classe, do gênero e da raça forem observadas, será possível perceber a complexidade das forças que modelam as atitudes e comportamento sexual. Tais forças por sua vez tornaram possíveis abertura para o desenvolvimento de identidades sexuais e de gênero diferenciadas (Weeks, 2019, p.76). De fato, ainda existe expressamente um controle sobre os corpos a partir das políticas de disciplinamento das sexualidades, e por isso as diferenças sexuais e consequentemente de gênero, são importantes para compreender as relações sociais envolvendo mulheres e homens.

Numa tentativa de repensar a questão de gênero a partir de uma proposta teórica decolonial Raewyn Connel (2016), afirmou que ele “é especificamente uma questão de corporificação social. Tecnicamente, o gênero pode ser definido como a estrutura de práticas reflexivas do corpo por meio das quais corpos sexuais são posicionados na história” (p. 17), e dessa forma, propõe como alternativa que se aprendam a construir conhecimento para além das respostas elaboradas por experiências de uma minoria privilegiada, no caso, da metrópole (p. 51, grifo nosso).

Mas toda essa breve tentativa de contextualizar a relação dinâmica entre corpo, sexualidade e identidade, é no sentido de explorar uma situação particularmente vivenciada por pessoas Trans, e o processo de transformação de seus corpos. O caminho trilhado por pessoas trans no processo de construção de uma “nova” identidade, demanda inicialmente da incorporação – aqui compreendida no sentido de produção de um novo corpo a partir da percepção, e, portanto, da aliança com sua própria vontade – constituída de elementos (interiores e exteriores), que servirão como recursos na formação dessa nova pessoa.

No caso das pessoas Trans o não reconhecimento do gênero que lhe fora atribuído no seu nascimento e registrado em seu documento oficial, configura-se como ponto de partida para a construção de uma nova trajetória em direção a construção de sua identidade. Essa transformação é fortemente combatida por parte da sociedade que não está convencida do direito das pessoas Trans de escolherem ser o que desejam, ao ponto de grupos mais conservadores tentarem violentamente controlar seus comportamentos, seus movimentos, e até mesmo seu direito de existência.

Ao corpo trans é imputado o dever de assumir uma identidade e aparência que, a depender do juízo alheio, é carregado de ambiguidade: Ela (a aparência) NÃO DEVE ser outra senão aquela à qual foi destinada, ou seja, é cobrado dele uma coerência à sua condição biológica. Todavia, paradoxalmente, existe um outro movimento que cobra das pessoas Trans que resolveram passar pelo processo de transição, que assumam a identidade desejada de forma mais passável possível, ou seja, ela DEVE ser idêntica à outra (aparência) que foi almejada. Explicando, no primeiro caso, a identidade de gênero incorporada é inadequada, portanto abjeta, indesejada, condenada. Esse não reconhecimento e condenação do corpo trans é muitas vezes utilizado para justificar o controle alheio sobre sua existência, seu modo de ser, suas escolhas, ao ponto de rebaixa-lo a uma condição de inumanidade. E em alguns casos a violência é utilizada como punição pela profanação deste corpo, por quem o habita. Toda ação corretiva sobre o corpo parece ser justificada, inclusive destruí-lo até a morte. Não custa lembrar que o Brasil ocupa a primeira posição dos países com maior caso de assassinatos contra pessoas Trans.

Na segunda intervenção, caso haja a decisão de transição, que ela seja indubitavelmente perfeita, ao assumir uma outra identidade de gênero, que não aquela registrada no seu documento de RG, o corpo trans precisa ser “verdadeiro”. Recai, sobre ele então a obrigatoriedade de se “passar” pelo gênero com qual se identifica. Não é bom visto um modelo de feminilidade/ masculinidade falso. A passabilidade se trata dessa habilidade de afastar qualquer dúvida quanto a sua identidade de gênero, e envolve uma série de quesitos: o quanto ela se parece fisicamente, se veste, fala, gesticula, e se comporta de acordo com os estereótipos do gênero escolhido. Para as pessoas trans, tal condição é compreendida de forma distinta: seja como mecanismo de proteção, por medo da violência que possa recair sobre o seu corpo, ou como uma questão de autoafirmação da sua identidade, e, portanto, de poder sobre o próprio corpo.

Se para um grupo social o corpo trans não pode existir, “é errado”, “é doentio”, ou “é pecaminoso”, para outros, quanto mais próxima da aparência do gênero escolhido, mais “de verdade” esse corpo é. Pode-se imaginar o quão cruel é essa situação? As inscrições corporais avaliadas pelos juízos morais e estéticos alheios evidenciam o controle sobre o corpo trans, onde a noção do que é ser homem ou ser mulher, remetem mais uma vez à matriz heteronormativa. Mesmo o corpo trans tendo sobrepujado a identidade de gênero que lhe fora atribuída desde a nascença, ainda necessita da aprovação alheia e talvez seja essa passabilidade um fator determinante no processo de reconhecimento, e de inclusão no ambiente em que se relaciona.

Esse processo de adequação do corpo a uma identidade de gênero foi compreendido por Judith Butler através da noção de performatividade, entendida como uma prática reiterativa e citacional. Para ela, a materialização de um dado sexo diz respeito, centralmente, à regulação de práticas identificatórias. Mas ela não afasta a possibilidade de ocorrer também a desidentificação com as normas regulatórias pelas quais a diferença sexual é materializada” (p.197,198). Portanto, no caso das pessoas trans, observa-se uma situação de negação de uma identidade de gênero que fora materializada através dos seus corpos, mas também a formação de um novo corpo que é forjado a partir da repetição dos elementos “pertencentes” ao gênero oposto.

“Os corpos são construídos a partir de uma performatividade que cristaliza o sexo nesses corpos. O gênero é uma mimese corporal que se institui através de um sem número de repetições de dados padrões os quais o sujeito internaliza para existir. Esta internalização tem por objetivo tornar esses valores externos naturais. É essa performatividade que permite com que um corpo biologicamente masculino atue como feminino e vice-versa” (León, 2012, p. 228-229)

Se pensarmos na passabilidade como processo de formação de uma identidade que depende de elementos constitutivos de masculinidades e feminilidades, em sociedades e culturas distintas, podemos pensar gênero como um campo de intensas disputas. Como se não bastasse o difícil e dramático processo de transição que as pessoas trans precisam vivenciar, correndo risco de serem expulsos da convivência familiar, escolar e de trabalho, e terminar na solidão e talvez pobreza, ainda necessitam do reconhecimento da sociedade, como cidadã e sujeito de direitos, a começar pelo tratamento, com respeito ao nome que escolheu ser chamada, até da provisão material pelo Estado em garantir sua segurança e condição digna de vida.

Finalmente, verificamos que o corpo é abordado de diferentes maneiras, mas geralmente, é retratado como unidade de participação do sujeito no mundo. Nas sociedades modernas, a sua relação com a sexualidade atingiu centralidade, numa relação dialética e autoexplicativa, como se um definisse o que o outro é. E o caráter disciplinar e de controle sobre ambos foram sendo utilizados no processo formação da identidade do sujeito, a fim de garantir a manutenção de poderes e de privilégios.  Mas, como as suas fronteiras são discursivas e subjetivas, elas podem frequentemente ser estremecidas e novas identidades podem emergir, fazendo com que as estruturas opressoras, como no caso da hegemonia patriarcal e heteronormativa, sejam questionadas, e superadas. As pessoas trans desafiam tais estruturas através da afirmação de suas identidades transformando seus corpos em telas em branco, dispostas a serem pintadas de acordo com os seus desejos de vida. Reiterando práticas ou não, elas permitem a existência de novas possibilidades de existência, e de quebra contribuem para reflexão de quem somos, todos nós.

 

Referências

Butler, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: O corpo educado: pedagogias da sexualidade/ organização Guacira Lopes Louro; tradução Tomaz Tadeu da Silva. 4 eds. 2 reimp. BH: Autêntica Editora, 2019.

 

Connell, Raewyn. Gênero em termos reais. Tradução Marília Moschkovich. SP: nVersos, 2016.

 

Le Breton, David. A Sociologia do Corpo. Tradução de Sonia Fuhrmann. 6. Ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

 

León, Adriano de.  Os Labirintos do Desejo: desenhando uma metodologia anarcoqueer. ISSN 0104-8015, Política & Trabalho- Revista de Ciências Sociais, n. 36 – abril de 2012 – pp.219-235

 

Foucault, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. RJ: Edições Graal, 1988.

 

Silva, Tomaz Tadeu da. Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Tomaz Tadeu Da Silva (org.); Stuart Hall; Kathryn Woodward. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

 

Weeks, Jeffrey. O corpo e a sexualidade. In: Louro, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 4 ed; 2 reimp.- Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

 

[1] Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais-UFCG. Integrante do Grupo de Intervenção e Pesquisa Devires/CNPQ. [email protected].

 

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