A República dos Cínicos

 

 

Adriano de León[1]

O cinismo é a forma de filosofia que não cessa de colocar a questão:
qual pode ser a forma de vida que seja tal que pratique o dizer-a-verdade?”

Michel Foucault

  1. A Instalação do Cinismo

O ano é 2020.  O mundo abatido por um vírus.  Governos declaram isolamento social compulsório. São suspensos os mais caros valores da democracia ocidental sob o domínio do medo e em nome da saúde da população.  No Brasil, o presidente debocha das mortes pela covid-19, debocha da Ciência, se vale das suas mídias sociais publicando lives cujo fundamento é o cinismo como forma de governabilidade.

“E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”, disse Jair Bolsonaro sobre mortes por coronavírus; “Sou Messias, mas não faço milagre”.

E daí… Termo essencial para se compreender o descaso com o outro.  Cinismo com a desgraça alheia ampliada no país pela pandemia do coronavírus. Cinismo com a dor dos enlutados. 

A partir de 2019, entramos na era do cinismo no país.  Claro que este modelo vinha sendo construído desde as manifestações de 2013 país afora.  Reivindicações de caráter ultra individualista, na sua maioria, uma grita descontrolada pelo fim da corrupção, mas não da corrupção estrutural, e sim de um tipo específico de corrupção: a de um grupo, de um modelo de governabilidade. O grito era por cortarem-se cabeças.  Aprisionamentos.  Fúria lastreada pela construção midiática do ódio. 

Cinismo e ressentimento de mãos dadas.  Um povo que sempre perdeu, mas por um tempo teve participação nas políticas públicas e no mundo do consumo de casas, automóveis, aeroportos e bens de lazer. Com a crise mundial de 2014, já instalada no Brasil, o candidato derrotado Aécio Neves convoca os ressentidos, como ele, para se insuflarem conta o governo.   Veio o golpe e a deposição da presidente Dilma Rousseff.  Veio a “ponte para o futuro” de Michel Temer e a ilusão de vender o país e distribuir a renda com todos. Enrolados em bandeiras verde e amarelo, parte da população ressentida por não mais poder consumir, se alia ao radicalismo de um projeto autoritário, o projeto do messias, do mito do salvador.

Havia então, em 2018, dois pais da pátria.  Um pai, reedição do antigo pai dos pobres, Getúlio Vargas, que se encontrava preso: o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.  O outro pai, também uma reedição dos pais de coturnos, urrando às ruas seus ideais de autoritarismo, misoginia, homofobia, o ex-capitão do exército: Jair Messias Bolsonaro.  A pátria desnutrida que precisava deste significante pai-salvador-provedor. A patriazinha de Vinícius de Moraes que se dividiu entre o pai do Antigo Testamento, cruel, absolutista e punitivo e o pai do Novo Testamento, acolhedor, justo e que perdoava os maiores pecadores. Enfim, naquele momento de outubro de 2018, a ira venceu a pacificação, os ressentidos foram maiores e a eleição pendeu para o lado dos cínicos.

Toda moral cínica implica num devir cínico.  Num grupo social heterogêneo como é nosso caso, o devir cínico é a base para as múltiplas manifestações de autoritarismo.  O pai que veio para botar ordem.  Uma ordem perdida pela corrupção, pelas políticas para as minorias.  Um pai que veio reestabelecer a moral corrompida pelas feministas, pela população LGBTQIA+, pelas cotas sociais. 

Antes mesmo da pandemia do covid-19, havia fascistas, moralistas, autoritários, antidemocratas escondidos em máscaras do silenciamento.  Como rizoma, estavam à espreita de eclodirem, como serpentes recém saídas de seus ovos, ávidas pela caça, pela inoculação do veneno, pela eliminação das diferenças e dos diferentes.

Trouxe assim, aquele messias dos ressentidos, o cinismo como modelo de gestão pública.  Rindo dos mortos.  Rindo das queimadas.  Insuflando a população a se armar, como milícias de si mesmos, em políticas sem o Estado de proteção social, com o deboche como forma de comunicação e o escárnio como estratégia de poder.

A Ação Político-Cínica

O cinismo lança os sujeitos na desorientação.  Não há diálogo com um cínico. Lembro dos meus tempos de escola, quando um dos colegas cínico desafiava a direção com aquele riso do Coringa no recanto da boca.  Nem a balbúrdia, nem o atrevimento, nem mesmo os gritos eram mais danosos do que o riso cínico.  Ao rir-se do outro, o cínico está dizendo que este outro não lhe importa.  Que suas ordens ou palavras são vãs. O cínico olha nos olhos do outro e esboça seu riso vadio, o riso que o blinda de dialogar, até mesmo de se defender.  O riso cínico (e daí?…) joga a subjetividade do outro para um lugar do vazio.  Para o cínico só existe o seu devir. 

No cinismo há uma ética: o parecer ser.  Assim, abandonamos a desejada ética do ser para uma ética do ter no mundo capitalista.  Já não basta ter sangue azul correndo nas veias como status de nobreza.  No capitalismo é preciso ter algo.  E até um sangue azul pode ser comprado, como o fazem os burgueses ingleses ao comprarem títulos de nobreza dos duques, condes e viscondes falidos.  Entretanto, a própria lógica do ter é acrescentada com o parecer ser.  No cinismo, o mundo das aparências é o que vale.  Isto foi visto no grotesco episódio do impedimento de Dilma Rousseff, quando dos votos declarados.  Todos clamavam pela deposição citando frases de efeito e berrando seus feitos morais para justificar seus votos.  Todos sabiam quem eram aqueles homens e mulheres, mas o pacto cínico foi celebrado para um objetivo coletivo.  Ao lado disto, um juiz sem o menor saber jurídico, protelou uma sentença condenatória para o ex-presidente Lula com base em nada, com base em suas puras convicções. Cínico.  Todo mundo jurídico sabia daquilo, mas em nome de um projeto comum, se calaram ao cinismo jurídico que hoje passa a ser denunciado e quebrado.  Mas já é tarde.  A República dos Cínicos foi implantada com sucesso. A  Sérgio Moro não importava ser juiz, mas apenas parecer ser um bom juiz, pelos canais midiáticos que criam verdades a partir de inverdades.  Isto é o cinismo em sua plena manifestação.

Na República dos Cínicos as mais obtusas práticas de poder são reveladas e nada é alterado.  O poder do cinismo é anestésico.  Aqueles que se insurgem contra ele são alvo de piadas e deboches.  São alvo de esculacho público nas redes sociais, com sua reputação destruída imediatamente pela velocidade das informações em rede.  “À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”, diz o dito popular, ao se referir ao tema das aparências em lugar das essências.  No domínio do cinismo o mundo é o das aparências, o consenso de que não basta ser moralista, basta aparentar ser moralista.  Um fato gritante foi a pastora deputada carioca Flodelis. A parlamentar, que é pastora e cantora gospel, foi acusada de ser mandante do assassinato do próprio marido, o pastor Anderson do Carmo, em junho de 2019. Em outubro de 2020, ela virou ré por cinco crimes relacionados ao caso, incluindo homicídio triplamente qualificado e associação criminosa. Segundo a mídia, oito pessoas foram presas por envolvimento no crime, sendo sete filhos e uma neta dela. O Ministério Público[2], na sua acusação, descobriu que o casal mantinha relações sexuais com os próprios filhos adotivos.  Mas logo depois, num culto na sua igreja, a pastora pousou com a tornozeleira eletrônica cinicamente, desprezando a justiça, as regras, o fato.  O cinismo é um espetáculo.

Peter Sloterdijk, no seu livro Crítica da Razão Cínica, escreve que o mal-estar na civilização se apresenta hoje em dia como um cinismo universal e difuso. Retomando a tese de S. Freud, sobre o mal-estar na civilização, a estratégia do cinismo é tornar opacas quase todas as formas de verdade e de subjetividade a partir do desprezo da alteridade da diferença. 

Assim, o cínico necessita de sempre um a mais.  O mais um do gozo, o que nunca acaba, pois que não existe o outro como agente do gozo. O cínico goza consigo mesmo.  Pensa se bastar quando elimina o que vem do outro, seja em forma de combate, seja em forma de censura, ou mesmo em forma de elogio. Os elogios são recebidos como comprovações de valor pelo cínico.   Na nossa sociedade hedonista, o  discurso majoritário de nossa cultura produz o mais-gozar, que é justamente a informação a qual o indivíduo não é capaz de simbolizar.  O cinismo é assim, um sintoma desta falta. 

Quando S. Freud se reporta ao gozo, diz que este está além do princípio do prazer, pois se refere a uma quantidade de excitação superior àquela suportada pelo psiquismo.  O cínico tenta construir um modelo de gozo que atenda tão somente ao império dos seus desejos.  Daí a dificuldade de se submeter a regras, como ensinou J. Lacan, de se submeter à lei.

O cínico se utiliza de uma fantasia para negar o acontecido.  Na maioria das vezes, é um negacionista.  Seus atos são justificados para um grande outro, este bem comum que nada é, esta missão de vida, algo messiânico. Uma banalização do mal, que segundo H. Arendt, fez com que Eichmann cinicamente declarasse que “só cumpria ordens”.  Para o cínico há um destino que se baseia numa certeza de que seus atos são os melhores, portanto superiores a quaisquer críticas.  Das críticas, o cínico se resvala rindo em desdém. Tudo se torna possível de ser realizado e o gozo que foi reprimido pelo discurso social passa a ser legalmente permitido por ele.

O gozo do cínico é a própria repetição compulsiva, que à semelhança do trauma, busca sentido e simbolização por meio da repetição, frequentemente em vão. Por isto, o cinismo é uma expressão não empática.  Não há o contraditório, tampouco o afetivo.  A busca pelo gozo envolve um ciclo infindável de repetição deste comportamento cínico, com o fim de obter satisfação e simbolizar seus atos. No entanto, a cada repetição ele se torna mais fragilizado e desamparado, escravo de uma ordem impossível de cumprir, gozando na dor que há muito já não promove mais prazer. No cinismo também reside a solidão. Como no filme Coringa, o riso é uma maquiagem da dor, uma dor de fogo de monturo, que queima por dentro, uma emoção que arde como azia.

Em Cinismo e Falência da Crítica, V. Safatle levanta a tese de que é interessante criar e fomentar uma cultura do cinismo, propagadora de uma forma de vida que segue sistemas de valores que se invertem no momento de sua aplicação. O devir cínico faz com que as transgressões sejam enunciadas como imperativos.

O cínico busca reparar uma falta que nele reside. Por isso o cinismo se dá como repetição, repetição do “e daí?” na falta de respostas coerentes.  O cínico não explica, pois habita nele certo autoritarismo e um narcisismo que faz com que o mundo orbite em torno dele. O próprio desejo do cínico está obscurecido para si mesmo.  Daí o riso cínico se impor à esta falta que é o desejo. O desejo aparece na fala devido a uma impossibilidade: a impossibilidade de dizer o que se quer. A presença do desejo em si é a presença de algo que falta na fala, de alguma coisa que está sempre atrás da fala, mas que não pode ser sempre traduzida numa demanda precisa.

O cinismo aparece como resposta a um desamparo e desilusão que assolou o mundo após as duas grandes guerras do século XX. O cínico moderno aparece claramente com a roupagem própria do cinismo a partir dos anos 1950´s. O desencantamento do mundo, após a presença real do extermínio da humanidade com o arsenal atômico das potências bélicas fez com que o cinismo moderno se orientasse para o novo modelo de vida: o indivíduo autocentrado, autopromovido (o self-made-man) e auto esclarecido.  Ao cínico não interessa grandes revoluções, mas a não-revolução.  A lógica cínica é centrada no indivíduo e suas paixões. Isto veio se desenhando nos cenários políticos das ditaduras do pós-guerra, numa afronta direta aos movimentos libertários da juventude hippie, das feministas e movimentos de igualdade de gênero.  Com a crise dos anos 1990´s, o cenário fez surgir em várias partes do mundo, a figura do yuppie, este indivíduo cuja meta é ganhar seu primeiro milhão. 

O cínico tem projeto para, no máximo, seu grupelho. Os projetos coletivos ficam de fora, como também as reivindicações dos grupos minoritários, estes inexistentes diante de um discurso cuja base é a meritocracia.  O cinismo também se aloja nos discursos sobre igualdade, mas a partir da lógica de que todos têm as mesmas oportunidades, mas apenas uns conseguem chegar no topo.  Ladrões que colam adesivos no carro “Foi Deus quem me deu”,  “Deus é fiel” , entre outros, cuja base simbólica é sustentar a ideia de que houve mérito na posse do bem, mesmo que se saiba que ali houve algum tipo de mutreta.  Para o cínico, é o discurso proferido que importa.  Os outros são invejosos, não merecedores, desmobilizados. 

A base do jeitinho brasileiro, estudado por R. DaMatta, é o cinismo.  A lógica que assegura o “você sabe com quem está falando?” também é a lógica cínica. O cínico sabe “tirar vantagem de tudo”, enganando pessoas, dando pequenos golpes, pois não importa a carga moral destes delitos, uma vez que “o mundo é dos espertos”.  Esta “esperteza” é a desculpa moral para que o cínico não se sinta em nenhum momento responsável e nem mesmo culpado, pois reza o dito popular que  “todos os dias ao sair de casa, há sempre um besta e um sabido que se cruzam.”  Em termos simples, esta suposta cultura da esperteza cria uma mentalidade de que “pode se dar um jeitinho em tudo”, que torna o Estado brasileiro refém destes cínicos. O cínico não vê falta de ética ou corrupção nos seus pequenos atos delituosos, mas geralmente advoga a tese de que a corrupção é causada pelo outro, por este outro nocivo.  As coisas estão bem, para o cínico, quando seu mundo está bem, afinal de contas “um tapinha não dói”.

Ao fazer-se valer a si mesmo, o indivíduo cínico torna-se um paranoico.  Sua paranoia se situa entre o que é produzido como realidade para ele e sua própria fantasia de realidade. Assim, constrói um mundo de notícias, muitas delas falsas, mas que balizam sua construção de realidade. O cínico é um sabe-tudo.  Vai buscar as mais estapafúrdias teorias para justificar suas ações no mundo. Rir-se das notícias falsas e as produz.  Este é um mecanismo da produção de um gozo, deste a mais infinito, pois o riso também pode esconder uma raiva acumulada por frustrações antigas, por desconexões com a realidade, para ele tão dura. O cinismo é, portanto, uma racionalidade.   O devir-cínico produz realidades que minimizam o vazio deixado pelos ideais coletivo de vida. Seu lema é “antes ele do que eu”.  Daí a produção de realidades se dê concomitantemente com a produção de discursos, discursos que se autorizam por si mesmos.  O cínico acha que suas verdades se bastam.

S. Zikek, num artigo intitulado You May! (Você pode!) escreve que atualmente é com facilidade que os enunciados éticos recaem em enunciados cínicos. O direito à privacidade se torna o direito de cometer adultério; o direito à felicidade legitima o roubo e a corrupção; a liberdade de imprensa torna-se o direito de mentir; a liberdade de possuir armas transforma-se na liberdade para matar; a liberdade das crenças religiosas aparece como o direito em adorar falsos deuses. Para o autor, o grande mandamento do cinismo atual é Você pode!  Isto nos leva a crer que a maior parte dos controles que que regulavam a vida social e garantiam o mínimo de decência não têm mais valor.

Deste modo, o mundo do cínico é uma ficção, um fingimento, uma quebra, portanto, entre o que se considera real e aquilo que seria da ordem da fantasia. Tomando a ideia de ambivalência de Z. Bauman, a razão cínica, ao tentar contornar a lei, abraça a ideia de que as leis foram feitas para impedir o pleno progresso dos indivíduos, para beneficiar uns poucos ou mesmo foram elaboradas com furos para ser desmoralizadas.  O cínico vive, então, na ambivalência entre sua lei e a lei geral.

A segurança passa ser risco nas sociedades modernas.  O efeito imediato disto é transformar identidades antes fixas em semblantes, em aparências das aparências. Se tudo está por um fio, se tudo está solto, a lei da selva se faz presente na sobrevivência dos melhores.  Neste sentido, o cínico se apodera deste devir-risco para desmoralizar regras e estruturas coletivas.  Quando advém uma crise, a razão cínica surfa na transformação da insegurança em gozo.  O cínico e seu mais-gozo acredita que assim ele estará menos desamparado que os demais.  Crê o cínico que a crise atinge os fracos e a indeterminação trazida pela crise pode ser subsumida pela experiência da busca incessante deste gozo.  O cínico é um acumulador de gozo. 

Este superego atual não consegue enfraquecer os desejos agressivos dos indivíduos.  Consequentemente, a moral-cínica tem caráter superegoico. O cínico, com efeito, cultua a tortura, o genocídio, desde que isto aconteça com o outro.  O cínico justifica ações violentas como atos necessários.  Pessoas apanham porque pediram para tal.  Mulheres são violentadas porque se mostraram como sedutoras ou presas fáceis.  As explicações são simplistas para o cínico.  Muita abstração fruto de um pensamento estruturado não lhe convém. Assim, contra a covid-19, tomem cloroquina, ivermectina ou algo que o valha, sem que se precise minimamente de uma pesquisa e comprovação científica. 

Para gozar, o cínico transgride a lei. O gozo cínico é o imperativo do exclusivo-eu. Foi isto que observou T. Adorno em seus ensaios sobre o autoritarismo. O cínico tem a ética da propaganda em lugar do fato.  Passa por cima da Ciência com certo desdém e negacionismo de pesquisas e experimentos.

A Aurora dos Ressentidos

“Bem vindos ao fascismo! Agora é a nossa vez, agora é o nosso momento, vocês vão ter que engolir porque vamos passar por cima de cada um de vocês, cada gay, cada sapatão, preto e preta. Vamos exterminar cada um de vocês. (…) Vão morrer um por um, cada preto e preta que acham que podem sair da senzala. Viva Bolsonaro! Viva a ditadura! Viva o Fascismo! Viva o Carlos Alberto Brilhante Ustra!”.

Este é um trecho de uma carta publicada num perfil de direita (Endireita Brasil, no Facebook) logo após o resultado final das eleições de 2018.  A ferocidade das palavras traduz o sentimento de vingança, de cólera, de ódio que saiu do armário a partir do ano de 2013 país afora.  Ressentimento.  Reviver o caos e por ordem neste.  Limpar, higienizar, separar, purificar. 

No seu belo ensaio O Mal estar da Civilização, S. Freud escreve que os ideais de beleza, pureza e ordem da modernidade deveriam ser buscados através da espontaneidade, do desejo e do esforço individuais.  Tudo belo e planificado.  O mundo livre da patologia com a pureza e controlado por uma ordem geral: o bem comum. No esteio do pensamento de M. Douglas em Pureza e Perigo, buscamos classificar o mundo segundo nossa própria ordem.  Apreciamos aquilo que é para nós  belo, puro e ordeiro. Inversamente, aquilo que não se enquadra no sistema de classificação e, logo, ordenação do mundo de uma cultura específica é comumente visto como sendo ameaçador e, portanto, como impuro, sujo.

O ressentimento busca restabelecer a pureza e a ordem do mundo. Pensando com F. Nietzsche, o sujeito cínico entende que toda culpa pelo mal que o acometa deve ser inscrita no outro.   É este outro o culpado por todas as perdas do ressentido. Foram as políticas públicas para negros, população LGBTQIA+, para mulheres, as responsáveis pela falta do ressentido.  Para este, o outro é um não-merecedor.

A aproximação entre estes sujeitos reside na forma como lidam com seus afetos, caracterizada por uma lógica peculiar: o fato de entenderem que a culpa por todo o mal que lhes acomete precisa, obrigatoriamente, ser inscrita no outro. O ressentimento é esta afecção que torna o sujeito desmerecido, desprivilegiado, desassistido em alguma instância de sua vida.

O historiador francês M. Ferro ressalta que no ressentimento encontra-se sempre uma ferida, uma violência sofrida, uma afronta, um trauma. Assim sendo, a  busca do ressentido é por depositar sempre a razão de suas desgraças no outro, isentando-se, consequentemente, do sentimento de culpar a si mesmo.  Assumir seus erros e responsabilidades forçaria o ressentido a lidar com a angústia e a sensação de desamparo, tão próprias dos sujeitos, mas negadas pela ação do ressentimento.

Assim como o obsessivo, o ressentido almeja por algum tipo de reconhecimento social.  Mas para tal objetivo, sua marca é de apontar os culpados e os destituir de seus territórios.  O ressentido busca a destruição das subjetividades através da demolição das reputações.  Inventa bandidos onde não há.  Cria fantasias de desordem e corrupção para combater este outro causador de suas perdas.

A fraqueza expressa pelo sujeito ressentido está sedimentada na impossibilidade de esquecer. Como o ressentido não consegue se desvencilhar da lembrança persistente, ele passa a acusar supostos culpados, mesmo a criar supostos culpados.  “A culpa é do PT” se transformou quase em mantra das hordas dos ressentidos, envoltos em bandeiras verde e amarelo, de olhos esbugalhados gritando pela força militar para combater os males da democracia.  Porém esta ira não visa uma reparação pessoal, uma vez que o ressentimento está lastreado no rancor, na volta da eterna lembrança – mesmo que fantasiosa – de um tempo em que tudo lhe foi roubado.

Ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que os fez sofrer. Um outro que não é um estranho, nem um distante, nem um forasteiro.  O outro é um indivíduo próximo, um antigo vizinho, alguém da família, um colega de profissão, segundo R. Kehl.  Este outro culpado pelo ressentido é, supostamente, alguém muito parecido com ele e que ocupa um lugar que, de fato, seria dele e lhe foi tomado.  Daí ser o ressentimento brasileiro um fenômeno das classes médias.  Aqueles que, depois da crise econômica que se abateu no segundo governo de Dilma Rousseff, foram alijados de alguns bens materiais.  Desde o porteiro que não conseguiu mais pagar o carro até o professor que não concluiu seu doutorado.  Que se busque um culpado, aquele bode expiatório.  Foi este mesmo fenômeno que acometeu na Alemanha nos anos que precederam o nazismo.  Quando da ascensão de Hitler, a classe média alemã já tinha os responsáveis por suas grandes perdas econômicas: o judeu.  Assim, eliminando-se a causa, elimina-se o problema.  

Mesmo não sendo um conceito psicanalítico, o ressentimento é tema recorrente no debate clínico.  Aparece na clínica como uma categoria do senso comum que nomeia a impossibilidade de esquecer ou superar um agravo ou um trauma.

Não esquecer é sua posição clássica.  Ao perdoar ou esquecer o outro que lhe causou o dano, o indivíduo abandona o ressentimento.  O ressentido rumina suas dores num looping de gozo.  Goza com a lembrança do mal que supostamente lhe foi feito. Ele se envenena com seu sentimento de vingança, quase num movimento masoquista de retorno de más lembranças como uma pulsão agressiva sobre o self.

Como este movimento é de eterno retorno, a vingança nunca chega.  Daí, mesmo após a vitória de J. Bolsonaro, os brados da vingança não cessarem. Dois anos após as eleições as ações ressentidas continuam nas redes sociais, nas famílias, nos locais públicos.  Talvez para os ressentidos o verdadeiro mal seja um bálsamo para sua vida esvaziada de sentidos.  Como prega a ministra Damares: “o cão é muito articulado”.  Este cão – o diabo – nunca cessará de punir os humanos.  Para o ressentido, ter um culpado o faz sentir mais potente.

O ressentido se instala neste lugar da vítima.  Ao dirigir suas frustrações ao outro, ele reafirma seu lugar de inocente perante sua suposta derrocada.  Este movimento faz com que o ressentido seja um acusador em potencial.  Refratário ao contraditório, o ressentido não ouve.  Não reflete.  Como descreveu F. Nietzsche, o ressentimento não espera ser reparado.  A vingança é o seu alvo maior, alvo este que nunca será alcançado. Este é o império do gozo do ressentido:  repetir, repetir, repetir o movimento de culpabilização do outro.  Este outro que é uma feminista que denuncia a masculinidade tóxica.  Este outro que é o negro cotista que tomou a suposta vaga da filha do ressentido.  Este outro que é um gay que fere a boa moral da família com sua exposição pública. Todos estes outros que receberam verbas oriundas de políticas públicas inclusivas, as quais suplantaram o mérito em nome do protecionismo das minorias, segundo os discursos ressentidos das redes sociais.

O elemento narcísico do ressentido é o espelho de uma vingança que nunca acontecerá.  São imagens dentro de imagens, como um espelho colocado frente a outro. O seu gozo é o ritornelo das suas queixas contra este outro usurpador. O ressentido porta uma razão natural.  É então a partir da opinião dele que as coisas têm sua resolução.  Desta maneira todo o jogo de falsas notícias amplamente divulgadas pelos grupos de whatsapp, pelas redes sociais (kit gay, mamadeira de piroca, comunismo…) é consumido como verdades.  No fundo, o ressentido sabe que se trata de falsidades, porém devem ser espalhadas por abaterem este outro, este inimigo, este cujos adjetivos são a confirmação da vingança como meio de superação.  Elegem seus líderes, mas podem, em algum momento, também investirem sua ira contra estes mesmos.  O ressentimento não tem alvo certo, pois a busca deste outro e da reparação do dano não obedece a nenhum tipo de racionalidade a partir de fatos.

A perda do ressentido nem sempre é material.  Na maioria dos relatos dos ressentidos na clínica, a queixa é da perda de um lugar.  Um lugar natural de pertencimento, seu desde sempre, mas que foi invadido por outros.  O debate das cotas raciais nas Universidades Públicas tem muito de ressentimento.  Como se trata de um campo de saberes científicos, os ressentidos usam de estratagemas jurídicos para o confronto.  Dizem que isto fere os princípios da igualdade de oportunidades, que as cotas criam vícios, que traem as garantias legais.  O que há no discurso sublunar é a frustração de um lugar supostamente deles que foi ocupado por “pessoas que nem precisam se esforçar só porque são negras, só porque são índios…”  

Fato comum no discurso ressentido é a memória de um tempo de privações na convivência com seus pais, mais ainda se estes tenham sido pobres durante sua infância.  Desta maneira, é quase comum vermos hordas de ressentidos em igrejas neopentecostais.  É nelas que eles encontram um alento pra suas frustrações.  Os pastores escolhem a dedo os trechos de um deus punitivo, de um deus restaurador da ordem, enfim, de um deus ressentido e vingador. O discurso do merecimento pela glória divina se coaduna com as expectativas do ressentido.  Outro discurso que ampara o ressentimento é o discurso do self-made-man, o empreendedor que dispensa as migalhas do Estado, que se faz por si mesmo, que se garante no mundo com seu trabalho e suas conquistas.  Não à toa, livrarias são entupidas de manuais de autoajuda sobre enriquecimento por meritocracia, sobre ter seu próprio negócio.  Andando de Uber nas ruas de João Pessoa, observei nas minhas conversas com os condutores este discurso. “Ser Uber é bom.  Sou dono do meu próprio negócio, trabalho para mim.”  Quando eu os questionava sobre seus direitos com a Uber e o pagamento da participação nas corridas, eles tergiversavam e reforçavam o discurso de que aquilo era bom.  Mas depois me falavam de um tempo em que tudo foi perdido, de um tempo em que seu lugar foi apoderado por um outro: “eu tinha um bom emprego, mas com o governo daquela mulher, as vagas fecharam.  Quando reabriram, outros ocuparam meu lugar.”

Estes substitutos em muito se assemelham à ideia de J. Lacan sobre o ciúme fraterno quando do nascimento de um irmão. O irmão mais velho desenvolve uma rivalidade em relação não ao seu irmão mais novo, mas em relação à sua própria imagem.  A recomposição desta imagem perdida pode conduzir a um adulto ressentido. Aquele adulto que sempre quer ser o primeiro, a todo custo, que desenvolve uma competição extrema com os outros, que pode passar por cima de todos para conquistar este lugar perdido, mas que sempre foi seu. Para fugir da tensão provocada pela fantasia de uma idade do outro – um passado sempre de glórias e conquistas – o ressentido escolhe um outro a quem atribui sua desgraça.  O ressentimento requer, desta maneira, a eleição de culpados, os quais devem ser eliminados para a volta da normalidade.  A paranoia do ressentido é que, mesmo eliminando possíveis culpados, seu sofrimento nunca acabará, pois assim é a lei do gozo. O gozo é o irrealizável.

Ressentidos, cínicos e hipócritas

“A oportunidade que nós temos, que a imprensa está nos dando um pouco de alívio nos outros temas, é passar as reformas infralegais de desregulamentação, simplificação, todas as reformas que o mundo inteiro nessas viagens que se referiu o Onyx certamente cobrou dele, cobrou do Paulo, cobrou da Teresa, cobrou do Tarcísio, cobrou de todo mundo.” – Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente

“O senhor já notou que o BNDES e a Caixa, que são nossos, públicos, a gente faz o que a gente quer. Banco do Brasil, a gente não consegue fazer nada e tem um liberal lá. Então, tem que vender essa porra logo.” – Paulo Guedes, ministro da Economia

Por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF.” – Abraham Weintraub, então ministro da Educação

Eu nunca fui responsável por nenhum vazamento ilegal dentro da operação Lava Jato. As decisões, nós levantávamos sigilo com base na Constituição, com a necessidade da publicidade dos processos. Tudo isso foi feito com transparência.  O que eu permiti vazar foi em nome da justiça e do bem do país. Sergio Moro, então Ministro da Justiça, negando que tenha vazado ilegalmente as ligações dos ex-presidentes Lula e Dilma para a imprensa.

Era o dinheiro para pagar meus funcionários…”  Senador Chico Rodrigues (DEM-RR)  preso pela Polícia Federal com cerca de 18 mil reais escondidos na cueca.

Esta é uma parte da farsa da nossa reles-pública atual.  O projeto político de poder consiste em tratar com desdém opositores e críticos.  Como estes cínicos sempre estão em busca de algo que pensam que perderam, o projeto de poder é uma fantasia de que estes lugares do vazio serão preenchidos.  Mas é verdadeiramente no exercício do poder que a paranoia persecutória se instala.  As ordens são de destruir este inimigo, prender este outro, acabar com suas reputações em redes de notícias falsas. Mas eles nunca têm paz, pois se comportam como um cão que persegue seu próprio rabo, num movimento viciado sem fim.

O poder é o foco do gozo.  Não tem fim seu exercício.  Nada nele repousa.  É como uma cachaça para um alcoólico, sempre uma saideira a mais.  O discurso dos cínicos-ressentidos é sempre este um-a-mais.  Como uma paródia do sistema capitalista, a busca pelo consumo nunca cessa, mas não consumo de mercadorias, e sim o consumo de um lugar há muito perdido e que nem mesmo o exercício de um cargo minimizaria tal dor.  É assim comum observarmos que estes ressentidos-cínicos não descem de seus palanques e se aproximam de teóricos da conspiração que justifiquem seus insanos atos. São terraplanistas, são advogados de um receituário que a Ciência nega, se veem como ungidos, como salvadores.  Ao lado deles, uma multidão de fieis que os tomam como mitos, uma vez que a razão cínica tem um efeito autoalienante:  os cínicos se consideram heróis de seu tempo.  O cinismo funciona como atitude em torno desta crença, pois consiste num não-diálogo, numa reatividade ao contraditório e uma síndrome persecutória em relação aos opositores. 

Mesmo castrado, o ressentido-cínico se transforma em castrador.  Elabora modelos de vida fechados: família, heterossexualidade, moral cristã punitiva, armamento da população. É de tal maneira tão eficaz este discurso que aos olhos dos súditos o fato da maioria dos nossos dirigentes serem divorciados, terem mais de uma família ao mesmo tempo, se envolverem em escândalos sexuais, infringirem os códigos morais cotidianamente, traficarem armamentos pesados, nada disto pesa no julgamento que deles é feito.  Muito ao contrário, são eleitos, reeleitos, ovacionados por um tempo.  O cinismo e o ressentimento adoeceram nossa sociedade.  Trocamos o país tropical abençoado por deus por um território do ressentimento dominado por dirigentes cínicos.

Mas como combater o “e daí?” do cínico, a vingança vil do ressentido?  Há duas saídas, ainda longe de ser alcançadas: a crítica social e o humor.  A crítica social dissolve este sujeito hiper centrado e dilui seu poder. Mas para a crítica é preciso ter diálogo aberto e franco, coisa que não serve nem ao ressentido e nem ao cínico.  O discurso crítico não transgride a lei, mas a atravessa. Esta travessia se dá no campo do debate das ideias, da permissão de escutar e ser escutado.  O comportamento do cínico-ressentido é o de barrar o debate.  Por isto que o presidente desta República dos Cínicos ameaça parar entrevistas toda vez que uma pergunta não lhe soa bem.  Ele não suporta ser questionado, como um deus que pune a criatura se esta lhe peitar.  A regra do cínico-ressentido é “a lei sou eu”.

O grupo Monty Python marcou uma nova forma de fazer humor na severa sociedade inglesa dos idos dos anos 1970´s. Ao retratar com ironia e sarcasmo as estruturas tradicionais mais rígidas do Império Britânico, o grupo fez escola.  Aqui no Brasil, o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, que mais tarde se revelaria na TV Pirata, tratava com ironia fina os desmandos de um cínico da modernidade tardia: o presidente Fernando Collor.  A quem fere tanto o humor?  O humor desconstrói ilusões e mentiras dos papéis sociais, mostrando de forma engraçada como nossa existência parece ser baseada em mentiras e ilusões. O humor inteligente suspende o sentido da vida, fazendo com que se perceba este sistema como alegoria ou como fantasia.  Ele, assim, nos conduz também à crítica social, à crítica dos valores morais que petrificam subjetividades e lugares. O mundo de ponta-a-cabeça é o exercício refinado do humor.  Uma vez que provoca o diálogo através do non sense, o humor crítico reinaugura o tempo coletivo.  Tão perigoso é o humor que o temem tendências ditas de direita o quanto as de esquerda.  Afinal, não faz parte do culto de parte da esquerda o politicamente correto?  O que é esta forma senão uma censura ao irônico, ao absurdo, ao desmonte das rígidas verdades?

Crítica social e humor sarcástico são elementos de desmonte.  Denunciam e desestabilizam as nossas mais rígidas estruturas de verdade.  Propõem a renovação a partir da denúncia das quimeras sociais, dos ideais de liberdade, fraternidade e igualdade.  E nisto tudo a arte que nos salva sempre:

“É um desmascaro
Singelo grito
O rei está nu
Mas eu desperto porque tudo cala frente ao fato de que o rei é mais bonito nu”
(Caetano Veloso, O Estrangeiro)

 

Para escrever este ensaio eu me inspirei nas seguintes leituras:

Z. Bauman,. O mal estar na pós modernidade. Um belo texto sobre a nossa ambivalência moderna.

S. Freud.  Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e  À guisa de introdução do narcisismo. Além do maravilhoso O Mal Estar da Civilização.

C. Melman, C. O homem sem gravidade-gozar a qualquer preço. Um texto sobre o cinismo e o gozo.

V. Safatle. Cinismo e falência da crítica. Uma experiência de psicanálise e política.

C. Dunker,. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros.  Mais um texto de psicanálise política.

M. Ferro. O ressentimento na história.

M. R. Kehl. Ressentimento.

P. Sloterdijk. Crítica da razão cínica. Um clássico sobre o pensamento cínico.

H. Arendt.  Eichmann em Jerusalém

T. Adorno. Estudo Sobre a Personalidade Autoritária.

R. DaMatta. O Que Faz o Brasil, Brasil?

S. Zizek. You May! Um belo artigo publicado no número 6, volume 21 da London Review of Books.

M. Douglas. Pureza e Perigo.

F. Nietzsche. Genealogia da Moral.  Há outras obras, mas esta é um bom começo.

J.J. Lacan. Os Complexos Familiares na Formação do Indivíduo. Sobre o conceito de gozo, recomendo a leitura sobre as fórmulas da sexuação no Seminário 20, Mais Ainda.


[1] Professor da UFPB. [email protected]

[2]   https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/10/12/flordelis-mostra-tornozeleira-eletronica-durante-culto-no-rj.ghtml.

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