Uma Ciranda Anarquista na Sala de Aula: movimentos de afetos em corpos que vibram

Alcidesio Oliveira da Silva Junior[1]

 Sentadxs, enfileiradxs, emudecidxs, plantadxs como sombreiros rígidos em plena sala de aula. Carvalhos de [in]justiça loucxs para gozarem a vida na plenitude das descobertas. Na imanência dos afetos que se movimentam turbulentos, a voz que emana do quadro negro já não tem muito efeito (já teve?). A vontade de governo e de formação engessada a fim de transformar cada corpo em uma atadura morta do Organismo do Estado, fétido, hediondo, apático, tenta ainda se firmar ortodoxa nos tempos acelerados da pós-modernidade e todas as suas possibilidades. Neste breve ensaio, cuspo palavras entaladas diante das minhas experiências em sala de aula com crianças no último semestre de 2019 como testemunha da ânsia de movimento, de ciranda, de rupturas [im]prováveis em espaços onde é [im]permitido dançar.

Aqui não trago respostas, mas inquietações flecheiras para agrupar sentido e afetos de outrxs como eu. Sou um corpo afetado e afeta-dor. Recheio meu bolo-texto de perguntas para deslizar qualquer fonte de autoridade de quem fala [e quem escreve] instigando quem me lê a formular respostas a estas perguntas (LOURO, 2007). Em tempos de endurecimento das linhas que insistem em nos constituir como matérias rígidas e incapazes de sorrir, como acender a paixão dos/nos processos educativos que se enamoram com as diferenças? Como criar territórios onde as matérias de expressão dos nossos desejos sejam possíveis e múltiplas? Quero trazer para uma grande roda de ciranda as reflexões desvairadamente anarquistas de Passetti e Augusto (2008) e as andaduras maravilhosamente assimétricas de Deleuze & Guattari (2012)  e Suely Rolnik (1989) para pensar novas experimentações do corpo na escola, com vontade vívida do desprendimento das amarras do Estado e de suas segmentaridades rígidas, acinzentadas, com significâncias tão saturadas de produção em série.

Experiências outras que tocam a criança de idade até a criança de coração, deslocando as peças que nos fazem Uno em função de multiplicidades rosas choque, berrantes que incomodam os olhos e que sujam todo o muro branco que busca empatar os devires. Fechemos as portas das nossas salas de aula, liberemos a imaginação coletiva, fujamos dos grandes olhos da Máquina cerceadora de desejos, de fluxos intensos. Olhemos para a vivacidade rebelde da criança, nos inspiremos com elas em toda a sua ousadia. Passou o tempo de darmos espaço e língua aos afetos, pensando o corpo-vibrátil, aquele que vê o que os olhos físicos não veem, como potencializador dos movimentos “eróticos, sentimentais, estéticos, perceptivos, cognitivos” (ROLNIK, 1989, p. 25). Puro ensaio de intensidades vívidas na des-captura cotidiana, rompimento com o que cala o grito dos desejos. Um corpo que vibra e também canta dizendo: você não me pega, você nem chega a me ver!

Repito: fechemos as portas da sala e subvertamos as palavras e ordens do corpo cujos órgãos se regulam em torno do esgotamento de potências! Façamos um Corpo sem Órgãos multicolorido e zombador daqueles que pensam estar em cima, que pensam uma estabilidade que rimos dela a todo momento! E assim, este Corpo “[…] se revela pelo que ele é, conexão de desejos, conjunção de fluxos, continuum de intensidades” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 27 – grifo dos autores),  anarquizando este Estado molar e pretensiosamente fadado ao fracasso. Já que somos constituídos por segmentos, passou a hora de fazermos fugir em linhas rápidas estes testes racionalistas, as avaliações medidoras/emudecedoras de potências, as filas ordenadas, as rezas que ferem como faca, as brincadeiras de meninos e meninas….Façamos devires-moleculares em meio ao caos, lançando ao alto fogos de artifício que anunciam escandalosamente devires-molotov-de-ideias, de corpos que se agitam rasgando os uniformes que exalam contenção de prazer. Nos inspiremos nas rebeldes experiências da educação anarquista que “[…] instiga ao combate, reconhece as intempestividades e provoca liberações” (PASSETTI; AUGUSTO, 2008, p. 10).  

Salve Ferrer y Guardia! Salve Robin! Salve “La Ruche”! Salve a Escola Paideia! Salve as Escolas Modernas anarquistas que valsavam imigrantes no século XX no Brasil! Um salve não aos decalques, mas às potências inspiradoras, aos fluxos que se espalham como um rizoma e chegam até este rapaz do nordeste brasileiro, território de cangaço e de movimentações antifascistas! Como é linda a vida de quem não é recôncavo e nem pode ser reconvexo… é como um mar agitado que enche os olhos de movimento e espanto!

Um movimento que [também] toca o currículo, fazendo deste um “território para hospedar as diferenças, afirmar a vida e multiplicar os encontros que nos fazem desejar e expandir” (PARAÍSO, 2018, p. 24). Linhas curriculares, caminhos de [de]formação que sirvam para “organizar os encontros, aumentar a potência, afectar-se de alegria, exprimir-se de modo a ser cada vez mais afirmativo”, destaca Gilles Deleuze (2019, p. 09) devorador de Spinoza, pois é por meio desta “prática experimentativa que se eiva o claustro que a consciência reduziu a vida”.

Se “[…] a primeira reação da escola contra a criança e o jovem está em definir a linguagem: como falar, escrever, sentar, andar, ver, respeitar, seguir e/ou reformar as regras, normalizar-se” (PASSETTI; AUGUSTO, 2008, p. 86), tentemos novas composições em sala que desafiem a linha até sua flexibilização, até sua vontade de fuga, de se voltar contra a endeusada relação família-religião-Estado-escola (Idem) que afugenta as perspectivas libertárias de liberação do pensamento molecular, roedor da grande corda, alfinetador do Gigante. Liberemos signos e encontros com aprendizados particulares, não engessadores, potentes como multiplicação de sorrisos. Embarquemos junto com xs alunxs em um grande tapete voador “veículo que promove a transição para novos mundos; novas formas de história” (ROLNIK, 1989, p. 67).

A sala de aula, como micropolítica dos afetos, precisa emergir como facilitadora de descobertas e de produção dos devires-centelhas de vida! Os grandes, poderosos, enquadrados/enquadradores podem não compreender tal liberação, pois se gabam ainda de serem os construtores das pontes das crianças com o conhecimento da humanidade, mas lembremos, como bem ilustram Deleuze & Guattari (2012) com a revolução apaixonada de Maio de 1968, que, por vezes, os movimentos moleculares, penetradores nas microescalas, tornam-se imperceptíveis à macropolítica, incapaz de reconhecer os agenciamentos vibratórios que se espalham aqui e acolá. São incapazes de compreender que “o que há em cima, embaixo e por todos os lados são intensidades buscando expressão” (ROLNIK, 1989, p. 68) e o que precisamos é construir cartografias desta geografia dos afetos, poderosa em seus efeitos pela própria amplitude das forças do desejo.

Por vezes, quando os Grandes percebem, se aproveitam destas pequenas ondulações para estenderem seus tentáculos de represamento de fluxos, como bem fez e faz o fascismo e toda a sua rigidez molar. Não somente este, mas a esquerda otordoxa também se alimenta da pretensão da captura por um Programa Revolucionário, como bem lembra Suely Rolnik (1989), preterindo a micropolítica em favor de atuações macro, padronizadas, messiânicas. Assim, deixo uma pergunta-provocadora-libertina para finalizar este texto, consciente da ebulição que tudo isso pode causar com o tempo, já que estamos falando de afetos e estes acontecem e se proliferam de maneira inesperada: em uma conjuntura do acirramento dos desejos, como produzir uma ebulição de afetos anarquistas que desafiam a macropolítica do fascismo, derretendo as estruturas sólidas que aparentam flexibilidade, mas cuja vontade é perdurar a molaridade da vida?

Fontes de inspiração:

Edson Passetti e Acácio Augusto, “Anarquismos & Educação” (Livro) – 2008.

Gilles Deleuze e Félix Guattari, “Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia” (Livro, volume 3) – 2012.

Gilles Deleuze, “Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981)” (Livro) – 2019.

Suely Rolnik, “Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo” (Livro) – 1989.

Guacira Lopes Louro, “Conhecer, pesquisar, escrever…” (Artigo) – 2007.

Marlucy Paraíso, “Fazer do caos uma estrela dançarina no currículo: invenção política com gênero e sexualidade em tempos do slogan ‘ideologia de gênero’” (Capítulo do livro “Pesquisas sobre currículo, gêneros e sexualidades” organizado por Paraíso e Maria Carolina da Silva Caldeira) – 2018.

Caetano Veloso, “Reconvexo”, na voz de Maria Bethânia (Álbum: Memória da pele) – 1989.


[1] Mestrando em Educação pela Universidade Federal da Paraíba, membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Culturais e Arte/Educação (GPCAE) e do Laboratório de Experiência, Visualidade e Educação (LEVE/UFPE). E-mail: [email protected].

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