Representações em Cena: Generificação, Subversão E Mecanismos Sexo/Gênero em “O Sorriso De Monalisa (2003)”.

 

Maysa Carvalho de Souza[1]

 

RESUMO: O presente ensaio busca refletir acerca das representações da sociedade a partir da obra cinematográfica O Sorriso de Monalisa (2003). O enredo da trama se passa numa temporalidade pós Segunda Guerra mundial e o cenário principal é a instituição Wellesley College, uma escola que só permite mulheres enquanto alunas. Metodologicamente foi realizada uma decupagem que possibilitou a descrição reflexiva de alguns elementos da narrativa fílmica. Num cenário pós guerra, os aspectos ficcionais da trama servem como pontos de análise para pensar as representações da sociedade no que se refere às relações afetivas-sexuais, o ideal do casamento, disciplina, as relações de poder institucionalizadas, a generificação dos corpos, subversão e os mecanismos sexo/gênero.

Palavras-chave: Representações da sociedade; Análise Fílmica; Generificação; Sexo/Gênero; Subversão.

 

 

Introdução

O ponto de partida desse ensaio é a compreensão da relevância social das artes por diversas dimensões para além da relação tripla e subjetiva que envolve a produção artística, o sujeito produtor da arte e quem a consome. Me dirijo a dimensão sociológica da arte na qual torna-se um instrumento interpretativo ou de análise para pensar e repensar aspectos culturais, comportamentais, normativos, ou ainda representações da sociedade.

Documentários, filmes, músicas, peças teatrais, ou mesmo obras em telas pintadas à mão ou virtualizadas, congeladas em imagens ou cartografias, transmitem mensagens e diálogos não somente entre produtores e usuários, mas entre tempos, entre épocas e culturas.

O sociólogo Howard Becker aponta variados tipos de representações da sociedade, explicitando que essas representações são produtos da sociedade, isto é, uma forma pela qual as pessoas comunicam o que sabem sobre sua sociedade ou alguma outra sociedade que as interessa (BECKER, 2009). O autor ainda estabelece uma conexão entre lugares e épocas das quais os indivíduos não conhecem através das próprias experiências, mas que através de informações adicionais e do contato com esses elementos representativos é possível um diálogo com algum objeto, fato, situação ou algo do qual há interesse de saber.

Enquanto sociólogas ou antropólogas, fazendo uso do feminino enquanto coletivo universal, durante a formação acadêmica ou mesmo na práxis profissional há um direcionamento a realizar leituras críticas para compreender, ainda nos termos de Howard Becker, as “representações da sociedade” tradicionalmente incorporadas ao saber acadêmico através de etnografias clássicas e textos teóricos que em um caráter formativo e reprodutivo tornam-se literaturas essenciais.

Retomando a ideia inicial de direcionar o olhar para uma ou mais produções artísticas contemplando o caráter indicativo da vida social em diversas circunstâncias, o desafio/ provocação aqui estabelecido é refletir sobre as questões educacionais permeadas pelas normas de gênero num período pós segunda guerra.

A obra cinematográfica escolhida para a reflexão proposta nesse ensaio é a produção audiovisual O Sorriso de Mona Lisa (Mona Lisa Smile – 2003), que retrata em linhas gerais a experiência de docentes e alunas em uma escola “single-sex”[2], isto é, dividida por gênero pós Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) e as implicações das normas existentes enquanto métodos disciplinadores implementados nesse sistema educacional gerenciado a partir do gênero.

Nesse ponto específico é importante salientar que a escola discutida nesse ensaio ao estabelecer quais corpos são passíveis de serem aceitos através do recorte remetente ao sexo biológico, constrói socialmente os corpos através disso. A célebre frase da Simone de Beauvoir “Não se nasce mulher, torna-se mulher” (BEAUVOIR, 1967, p. 09), contribui reflexivamente para pensar como essas instituições favorecem a generificação dos corpos ali presentes reforçando binarismos.

A partir disso, compreendo gênero enquanto construção social no qual os comportamentos e as identidades não resultam de um determinismo biológico (HEILBORN, 2002). Outra perspectiva é de que gênero não é uma simples categoria analítica, mas trata-se sobretudo de relações de poder (WEEKS, 2001).

Enquanto instrumento metodológico foi necessária a realização de decupagem[3] no intuito de observar a obra para além das descrições e cortes entre cenas, buscando utilizar desse instrumento enquanto um mecanismo útil para a análise dos estudos sociais, realizando pontes entre aspectos ficcionais, literatura acadêmica e outras produções que porventura possa se unir ao texto de forma a contribuir enquanto material que também revela formas de falar da sociedade.

A partir disso, esse ensaio discutirá as representações sociais de um cenário educacional pós guerra através de narrativa fílmica descrita nesse texto de forma não linear, destacando elementos ficcionais e estabelecendo contrapontos com as teorias de gênero.

 

“Nenhuma mulher escolhe não casar”? Generificação, subversão e outras reflexões a partir do enredo do filme “O Sorriso de Monalisa”.

 

“– Quem bate à porta do saber? Uma mulher comum.

O que você procura? Despertar meu espírito pelo esforço e dedicar minha vida ao conhecimento.

Então é bem-vinda. Todas as mulheres que quiserem segui-la podem entrar.” (Diálogo retirado do filme [ritual de início do ano letivo]. Cena II. O Sorriso de Monalisa, 2003)

* * *

“É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de esposa.” (Jane Austen. Orgulho e Preconceito)

* * *

“– Suas orelhas estão queimando? – O pé queima primeiro quando acendem a fogueira” (Diálogo retirado do filme [Baile de primavera, 1954]. Cena XXIII. O Sorriso de Monalisa, 2003).

 

O enredo dessa produção se inicia a partir do outono do ano de 1953 na instituição escolar norte-americana Wellesley, uma instituição que só aceita enquanto discentes jovens mulheres e é conhecida por ser a mais conservadora do país. Em um elenco majoritariamente constituído de atrizes brancas enquanto personagens principais e secundários, os homens também se apresentam nessa história enquanto personagens que oferecem destaques e problematizações.

Numa curta narrativa, a professora Katherine Watson[4] é contratada pela instituição Wellesley para lecionar a disciplina de História da Arte. Impressionada por seus ideais de mudança e pelo renome da instituição, a professora Watson frustra-se ao longo da narrativa ao perceber que a escola não preparava as alunas para seguir um suposto caminho autônomo do conhecimento, mas que tratava-se de uma instituição preparatória para o casamento.

Além de História da Arte, as alunas recebiam outras formações e instruções como as aulas de Língua Italiana com o professor Bill Dunbar e a disciplina de Postura, Oratória e Elocução (algo que contemporaneamente seria mais próximo do que se conhece por ‘Economia Doméstica’) lecionada pela professora Nancy Abbey.

Entre argolas, carrinhos de supermercado e fitas, os jogos que ocorrem no espaço escolar envolvem a expectativa da vida matrimonial. Frases como “Nenhuma mulher escolhe não casar” ou ainda “Dentro de alguns anos sua única responsabilidade será cuidar do seu marido e de seus filhos” refletem um período pós segunda guerra onde ainda se construía a expectativa do casamento e da família para ambos os gêneros (de modos particulares).

No entanto, do período que compreende a guerra aos anos seguintes, as relações entre os gêneros tornaram-se mais conflituosas, sobretudo na esfera familiar. As representações ou papéis anteriormente mais delimitados sofreram transformações em diversos aspectos, notando-se uma maior fluidez na organização social e principalmente na esfera do trabalho.

No filme menciona-se a guerra como algo que alterou as relações familiares e provocou o divórcio ou separação (algo ainda pouco comum e aceito socialmente na época) de casamentos e outros relacionamentos afetivos-sexuais.

A cultura midiática e todos os demais aparelhos institucionais tentaram impulsionar as mulheres para a vida matrimonial e devolver aos homens, agora de volta aos seus países de origem, o status da esfera produtiva em seus postos de trabalho. No enredo, uma das alunas ao escrever para o jornal da escola afirma:

“[…]Nossas mães se empregaram pelo país, mas nosso dever e obrigação é reassumir nosso lugar no lar”. (Retirado do filme. [Betty Warren escrevendo para o jornal da escola]. Cena XVIII. O Sorriso de Monalisa, 2003)

Ao se deparar com esses discursos a professora Watson propõe outras possibilidades para além do casamento à suas alunas, incentivando inclusive a conciliação entre os estudos, o trabalho e a família, direcionando em suas falas as alunas do Wellesley College à emancipação. É importante salientar que apesar de que se possa relacionar os ideais da professora com as pautas feministas, no filme esse termo não é mencionado.

Dessa forma, o enredo se passa num período posterior ao que historicamente se compreende enquanto a “primeira onda do feminismo[5]” e a obra “O Segundo Sexo[6]” de Beauvoir, por exemplo, já havia sido publicada. A construção da personagem, em hipótese, ao problematizar as relações entre homens e mulheres[7], sobretudo através do casamento e da educação, incorpora discussões sociais pertinentes da época, no entanto, não se afirma enquanto personagem feminista.

Ao discursar sobre as possibilidades de conquista das mulheres para além do matrimonio e incentivar uma de suas alunas a cursar Direito em uma grande universidade, a professora passa a ser interpretada como uma subversiva, alguém que “declarou guerra ao casamento”, que nega as tradições e que doutrina ideologicamente as alunas a irem contra “os papéis que naturalmente nasceram para desempenhar”.

Além do controle institucional sobre os corpos das alunas que imprimia as normas explicitadas em processos de recompensa e punição de ordem simbólica, a lógica é tão incorporada que por diversas cenas percebe-se a discente Elizabeth Warren (Betty) reproduzindo discursos e oprimindo suas colegas por não se adequarem aos padrões normativos de beleza da época, aspectos morais ou ainda pelo livre exercício da sexualidade.

Enquanto problematiza-se a sexualidade das alunas e das professoras (impedindo a visita de homens em seus aposentos por exemplo), a enfermeira Amanda Amrstrong é demitida após entregar métodos contraceptivos para as alunas, sendo descrita no jornal da escola enquanto alguém que “incentiva a promiscuidade”. Enquanto isso, o professor Bill Dunbar é conhecido por ter relações afetivas e sexuais com as jovens da instituição e apesar dos comentários negativos internos da direção e entre as professoras, não ocorre nenhuma punição efetiva em relação ao professor.

Esses são apenas alguns elementos descritivos que selecionei para provocar algumas discussões. O primeiro desses pontos é pensar a atuação da instituição em relação a educação das jovens mulheres contempladas no enredo. Seu modelo, seus jogos, as batidas do sino da igreja e sua forma arquitetônica contribuem para um aspecto estrutural vigilante no qual busca controlar moralmente todas as interações sociais internas.

Desfrutar de espaços coletivos e dispor de pouca privacidade é um símbolo característico. Nas aulas, a forma em que estão posicionados os acentos, a iluminação, a possibilidade de haver (ou não) alguém que examine o conteúdo e os métodos é característico do reflexo interno de um panoptismo social pautado na vigilância, controle e correção.

Ainda em termos foucaultianos, a escola enquanto instituição disciplinar, no contexto apresentado no filme, não apenas dociliza os corpos num caráter produtivo, mas ao mesmo tempo os generifica. Entre as aulas de como cruzar e descruzar as pernas e de como servir o jantar é possível perceber o corpo-linguagem enquanto um elemento subjetivo histórico que muito revela de uma época e da forma em que essas mulheres aprendiam a se servir de seus corpos.

As técnicas compreendidas enquanto “traços femininos” nada mais são do que produto de uma educação generificada na qual a performatividade é a sequência de atos não lineares e não fixos e que por isso são reforçados institucionalmente pela norma para que executem as práticas ou papéis que possuem identificações de gêneros, nesse caso específico os atributos que socialmente são relacionados ao feminino.

Por outro lado, todas essas técnicas, a glorificação da estrutura familiar e a romantização entorno do trabalho intelectual em servidão ao trabalho doméstico enquanto símbolo de amor e cuidado também comunicam um período no qual ocorre uma reorganização social.

Se existia a preocupação de que as jovens mulheres da Wellesley College seguissem os ideais de reprodução social definidos pelas expectativas de gênero, sobretudo no que se refere ao matrimônio, isso revela que havia outras possibilidades disponíveis que foram “abertas” em decorrência das transformações sociais da época, mesmo que em poucos casos, sobretudo para as mulheres brancas da elite ou da classe média.

Em contrapartida, nessa mesma época, as mulheres negras, imigrantes e de classes vulneráveis estavam impositivamente na esfera produtiva desde muito jovens. No entanto o enredo mostra apenas uma reservada e limitada instituição de elite com cem porcento do elenco constituído de pessoas brancas e não abre brechas e nem espaços para problematizar durante a trama questões interseccionais acerca das desigualdades no acesso à educação, profissão e a reprodução social derivada para além das expectativas de gênero[8].

A romantização da família e do cuidado associada a naturalização do trabalho reprodutivo é uma condição do funcionamento do sistema capitalista. Sem a presença de alguém disposto ou imposto a gerenciar o “lar” e do invisível trabalho do cuidado, nesta época em que se passa o enredo, a vida produtiva não seria possível. Federici (2019) afirma que a “dona de casa” é uma invenção do capital e “[…] Não é por acaso que a maioria dos homens começa a pensar em se casar tão logo encontra o primeiro emprego” (Federici, 2019, p.45)[9].

Outro elemento significante para pensar algumas questões que envolvem a problemática do enredo é o exercício da sexualidade. Associada a uma noção corporal que engloba sentidos, significados e prazeres físicos e mentais, para Lhomond (2009) a sexualidade humana se configura como um conjunto de práticas corporais que podem ou não envolver os órgãos genitais cuja finalidade é uma variável que se ressignifica conforme as épocas e as sociedades. No entanto cabe frisar que esta é uma compreensão moderna da sexualidade.

Elencando outras obras que discutem o tema, Reich (1979) associa historicamente a sexualidade ao casamento e ao ideal reprodutivo da instituição familiar, tratando nessa abordagem da família nuclear. Giddens (1993) propõe algumas discussões acerca das relações de sexo e amor nas sociedades modernas a partir do que foi compreendido enquanto revolução sexual, atribuindo ênfase ao que o autor conceitua como sexualidade plástica e ao esfarelamento do amor romântico como algo que descentraliza a sexualidade enquanto uma experiência prazerosa especifica para os homens.

Por outra perspectiva, Souza (2019) compreende a sexualidade enquanto construção social permeada de regras e normas que estabelecem as proibições e permissões que por sua vez são legisladas e que correspondem a diversos aspectos, dentre eles religiosos, políticos e morais dentro de uma temporalidade.

Como pode-se então buscar compreender o elemento da sexualidade em “O Sorriso de Monalisa”? Primeiramente, o enredo revela o cotidiano das professoras e alunas enquanto membros de uma instituição disciplinar que caracteriza o sexo enquanto elemento primordial de dimensões morais, biológicas, jurídicas e sociais.

O sexo biológico é o que define a entrada na instituição, esta que generifica os corpos. Nas aulas, como na disciplina de Postura, Oratória e Elocução, ou mesmo nos jogos e aulas de natação, o mecanismo sexual é incorporado através das técnicas do corpo traduzidas nas formas de sentar, servir a mesa, falar, andar, dançar, nadar e sorrir, etc., características que segundo a instituição compõem uma “boa esposa”. Dessa forma, tanto as noções de sexo como as noções de gênero são discursivamente produzidas no cenário escolar ao mesmo tempo que se inscrevem nos corpos através dos discursos morais e das técnicas corporificadas.

Desprovidas da possibilidade discursiva do prazer, há uma coerção moral vertical que dita os vereditos do sexo. A ordem é incorporada e reproduzida pelas próprias estudantes que em oportunos momentos oprimem outras estudantes por buscar métodos contraceptivos e exercer uma sexualidade plástica, desassociada do matrimônio e desprovida do interesse reprodutivo.

O casamento heterossexual, enquanto símbolo que legitima normativamente o sexo, é glorificado pela instituição contribuindo para os discursos que classificam as práticas sexuais e afetivas das alunas e professoras.

A personagem da enfermeira Amanda Armstrong, única personagem não heterossexual da trama, manteve um relacionamento com outra professora e ao narrar sua história trata de suas memórias com saudade e tristeza pelo falecimento de sua companheira. O corpo institucional cochicha esse fato enquanto segredo que passa pelos ouvidos de quem chega e alivia-se ao demiti-la por entregar métodos contraceptivos para as alunas.

A expectativa do casamento é declarada em diversas cenas pela professora Nancy Abbey. A personagem narra seu infortúnio a partir de um relacionamento anterior ao acontecimento da guerra e em suas falas evidencia a morte do seu amado. No entanto, esse discurso camufla o fato das transformações das relações pós guerra.

Por outro lado, as várias perguntas referidas a professora Watson sobre sua vida íntima (relacionamentos passados, noivado, expectativas matrimoniais ou mesmo a repreensão da instituição quanto ao seu envolvimento com o professor Bill Dunbar) revelam o desejo de saber para poder exercer controle sobre aquele corpo subversivo e inconformado que não aceitava com naturalidade as regras generificamente impostas.

O professor Bill Dunbar por sua vez, ao construir uma narrativa heróica da guerra se inscreve enquanto um personagem que incorpora um ideal de masculinidade que deriva entre o galanteador, o guerreiro e o intelectual que performa a virilidade e esconde o segredo que durante a trama é rapidamente revelado de que toda essa construção narrativa é apenas uma singela construção alicerçada nas pulsões do desejo do personagem.

Outras figuras de homens constroem a trama: O marido infiel e desatencioso da aluna Betty Warren, os envolvimentos descompromissados da Giselle Levy com homens casados, e o noivo da Joan Brandwyn que ao mesmo tempo que diz que a incentiva intelectualmente, coloca obstáculos para que a estudante reflita se consegue cursar Direito numa universidade e voltar a tempo de “preparar o jantar”. Além disso, é evidente o quanto o noivo da Joan prioriza com grande expectativa sua própria vida acadêmica (que durante o enredo passa da graduação para uma pós graduação) de forma a secundarizar os potenciais intelectuais da Joan.

Nesse sentido, o mecanismo sexo/ gênero permeia toda a narrativa fílmica se acentuando no enredo e na história dos personagens com graus de permissividade e proibições que derivam conforme o contexto e a relação instituições-normas-personagens que na tentativa sem sucesso do controle total reverberam punições simbólicas ditadas pela gestão autoritária e pela voz jornalística da moral (proferida por uma das alunas mais aliadas à instituição).

Por fim, os processos de resistência e subversão também são pontos destacados durante a narrativa. Compreendendo a impossibilidade de viver fora da norma e das estruturas do poder e que as expectativas alimentadas pelo sistema sexo/gênero da época direcionava-se a limitar e determinar os “destinos sociais” pautados nos gêneros, as alunas (Betty, Joan, Giselle e Connie), a enfermeira Armstrong e a professora Watson são figuras subversivas por potencializar condutas de enfrentamento mesmo dentro de uma estrutura disciplinar tão restritiva para aqueles corpos.

Todas essas personagens estão encadeadas em processos opressivos singulares de gênero, entretanto cada personagem em determinado momento assume uma conduta de enfrentamento, no qual mesmo de forma desintegrada ou individual, as sujeitas caminham rumo a “[…]derrubar novas barreiras e semear novas ideias[…]” (Trecho retirado do filme. [Betty Warren escrevendo seu último editorial em homenagem a professora Watson]. Cena XXVIII. O sorriso de Monalisa, 2003), promovendo um impacto coletivo local e ampliando as potencialidades subversivas de forma a ressignificar as práticas e condutas anteriormente aceitas enquanto parte de um destino natural.

Por não se submeter às imposições institucionais, a professora Watson pede demissão não renovando seu contrato. Enquanto uma agente da mudança, Katherine Watson cumpre seu papel subversivo no qual durante sua passagem pela instituição fortificou espaços de reflexão e enfrentamento e por mais que não fosse possível destruir as estruturas de poder ali existentes, a professora provocou problematizações e transformações principalmente no que se refere a formas de interpretar e refazer normas e expectativas referentes aos gêneros.

 

Algumas provocações finais

No presente ensaio foi discutido, ainda que de modo explanatório, alguns elementos presentes na narrativa fílmica na qual buscou-se aproximar a teoria da representação da sociedade com as teorias de gênero, estabelecendo um diálogo não guiado unicamente por uma corrente sociológica específica, mas trata-se da contribuição de textos sociológicos, antropológicos, obras literárias, teorias feministas e pós estruturalistas no intuito de que se possa pensar na pluralidade interpretativa e analítica das representações da sociedade, afinal não existe uma representação social pura, mas formas temporalizadas e parciais de apresentar, interpretar e analisar determinados fenômenos.

Torna-se importante ressaltar que a obra ficcional não retrata a descrição de uma realidade pura, até mesmo por que nem os documentários históricos mais detalhados possuem essa capacidade, ainda mais quando sabe-se que toda produção humana não é imparcial e nem neutra.

No entanto, o objetivo proposto foi problematizar como as representações da narrativa fílmica também serve de material analítico por indicar a vida social de algum tempo ou alguma época. A partir disso, ao pensar o modelo disciplinar institucional pós-guerra em “O Sorriso de Monalisa”, o enredo emite simbolicamente o convite para que se possa pensar a trama para além de mais um produto da indústria cinematográfica do entretenimento, provocando o olhar para a desnaturalização das relações e dos discursos que não apenas por tradição ou pela ordem moral social vigente criava expectativas quanto aos gêneros, mas como esses elementos favoreciam moralmente, discursivamente e economicamente  um sistema.

Propondo as considerações desse ensaio enquanto um exercício provocativo e não enquanto uma conclusão, ao pensar como a instituição Wellesley direcionava suas discentes para a construção subjetiva do desejo pelo casamento (reforçado pelas propagandas, anúncios e as ortopedias educacionais), para a generificação dos corpos com base no mecanismo sexo/gênero, ocasionando assim a formação de performances subversivas (ainda dentro dos esquemas normativos propostos no enredo), esses aspectos, apesar de localizados historicamente, suscitam a refletir acerca da contemporaneidade.

Aproveitando o questionamento da professora Watson em sua penúltima aula na trama, redefinirei para a seguinte questão: Quando as “acadêmicas do futuro” estudarem as relações existentes na sociedade contemporânea, como isso será retratado? O que dizem os anúncios atuais? E os filmes? E os livros? Quais temas são relevantes? Como a educação está se construindo (ou reconstruindo)? O que significa o casamento? Como se organizam as famílias para além as estruturas de parentesco? Como se constroem subjetivamente os desejos? E as profissões (ainda são generificadas)? Quais foram as transformações sociais que ocorreram nesses últimos anos e quais as implicações disso para a vida social? Como isso produz sujeitos?

Alguns teóricos, como o Han (2017) apontam o fim da sociedade disciplinar ou sociedade do controle elaborada pelo Michel Foucault em transição para uma sociedade do cansaço, no qual não se produz sujeitos da obediência, mas sujeitos da produção. Com isso, outras questões podem ser levantadas: Ainda alimenta-se dicotomias binárias nessa sociedade da produção e da auto-exploração? As violências psicológicas podem ser generificadas? As redes e as novas tecnologias são partes de construções normativas sistematizadas para o lucro ou há a ambivalência de potenciais subversivos?

Obviamente essas questões destoam das reflexões propostas no filme e discutidas ao longo desse ensaio. No entanto, reafirmo essas questões de forma a ampliar a discussão a provocar a reflexão sobre os corpos, as estruturas de poder e como essas relações se montam, se desmontam e se reconstroem com novas tecnologias e discursos em cada época.

 

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Obra cinematográfica:

  • O Sorriso de Monalisa (Mona Lisa Smile, 2003)

Direção: Mike Newell/ Roteiro: Lawrence Konner e Mark Rosenthal

País: Estados Unidos da América

Gênero: Drama/ Romance/ Histórico

Total de cenas: XXVIII

Duração/ horas: 01:59:13

Período temporal do enredo: 1953 – 1954.

 

[1] Mestranda no curso de Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (PPGS/UFPB). E-mail: [email protected]

[2] Single-sex education. Traduzindo do inglês, educação para um único gênero.

[3] Do francês découpage. “A decupagem é, antes de tudo, um instrumento de trabalho. O termo surgiu no curso da década de 1910 com a padronização da realização dos filmes e designa a “decupagem” em cenas do roteiro, primeiro estágio, portanto, da preparação do filme sobre o papel.” (AUMONT, 2003, p.71).

[4] Interpretada pela atriz Julia Roberts.

[5] Referente à divisão histórica entre 1ª, 2ª e 3ª onda do Feminismo. A autora Dominique Fougeyrollas -Schewbel, aponta que a primeira onda ocorreu no final do século XIX para o início do século XX. (FOUGEYRROLLAS-SCHEWBEL,2009).

[6] Le Deuxième Sexe – O Segundo Sexo. Sua primeira edição publicada consta no ano de 1949.

[7] Mesmo não usando o termo ‘gênero’, pois este só ganha evidência academicamente na década de 1970, inicialmente pelas nomenclaturas de ‘estudos da mulher’ ou ‘estudos feministas’.

[8] Para continuar a reflexão a partir de outra abordagem e cenário, pois trata-se de uma indicação da vida social no Brasil, indico a série brasileira “Coisa Mais Linda” (2019), 1ª temporada. O enredo se passa também durante os anos 1950 e retrata a vida de mulheres brancas e negras que enfrentam opressões de gênero/raça-cor/classe no Rio de Janeiro.

[9] Por isso a citação presente no início do texto: “É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de esposa.” (Jane Austen. Orgulho e Preconceito, p. 01)”. Essa obra literária indica, mesmo em aspectos ficcionais, as relações de uma época diferente do tempo problematizado em O Sorriso de Monalisa, mas que descreve o olhar atento da Jane Austen acerca das relações afetivas, sociais e matrimoniais característicos do seu tempo (publicado em 1813). Numa sociedade com pouquíssimas possibilidades para as mulheres, o casamento era não somente um símbolo de ascensão social, mas de segurança, sobretudo porque as mulheres não tinham direito a herdar propriedades. Por curiosidade, a palavra “casamento” é citada no romance 115 vezes.

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