Inconsciente como Consciência Clandestina: crítica psicanalítica à teoria do sujeito pressuposta na conferência “A Dominação” de Pierre Bourdieu (Universidade de Rouen, 1997)

Matheus da Cruz e Zica[1]

I. Introdução

Recentemente foi publicada uma obra bastante propositiva organizada por minha amiga Profa. Dra. Ione Ribeiro Valle da Universidade Federal de Santa Catarina, juntamente com o Prof. Dr. Charles Soulié, reunindo uma coletânea de textos de Pierre Bourdieu, muitos deles inéditos para a língua portuguesa, intitulada Pierre Bourdieu: uma sociologia ambiciosa da educação, lançada pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina em 2019.

Li com especial interesse o capítulo intitulado “A dominação” (Bourdieu, 2019 [1997], p.305-339), fruto de uma conferência de Pierre Bourdieu na Université de Rouen, no dia 26 de novembro de 1997. Isto porque o texto da conferência é ousado e mobiliza uma miríade de autores contemporâneos e de séculos anteriores para fundamentar seu ponto de vista a respeito dessa questão crucial para as Ciências Humanas e Sociais em geral, a saber: as relações de poder – entendida pelo sociólogo em questão sobretudo em temos da dominação.

Ao ler o texto em questão fui construindo relações dialógicas entre o que ali estava exposto com os próprios pressupostos teóricos com os quais tenho me habituado a trabalhar ultimamente para compreensão da estrutura das subjetividades, ancorados nos ensinamentos do psicanalista francês Jacques Lacan. Esse diálogo crítico que primeiro empreendi pessoalmente passo agora a torná-lo público com a finalidade de tornar possível que outras interlocuções a partir daqui possam surgir rumo a uma melhor compreensão da estruturação das subjetividades e de suas implicações para as relações sociais.

II. Mais do lado do sujeito

Poderíamos resumir a problemática de fundo do início da fala de Bourdieu a partir do seguinte trecho:

Freud reintroduz a dimensão que se pode chamar de psicológica da dominação. Ele vê claramente que há na dominação algo que se situa do lado do sujeito. É isso o que também sugere a questão de Foucault, sua fórmula é: se o poder fosse somente repressivo, se ele não fizesse nada além de dizer não, obedeceríamos a ele?

Portanto, Freud dá a essa questão um começo de resposta. Se uma autoridade qualquer consegue se exercer é porque os que a suportam são levados, por razões psicológicas, a suportá-la e a se submeterem a ela. Se estão subjugados é porque se sujeitam: pode ser porque se sentem culpados, entre outras coisas. Assim, o fundamento da dominação não deve ser procurado somente do lado dos dominantes, das forças armadas, da polícia etc., da violência de Estado. Primeira proposição: ele também deve ser procurado do lado dos dominados. Segunda proposição: ele deve ser procurado nos sentimentos, nas emoções (…), isto é, do lado dos dominados. (Bourdieu, 2019 [1997], p.314)

No eixo Freud – Foucault interessa a Bourdieu pensar na participação dos dominados com sua adesão ao processo de dominação. Pensar na dominação do lado do sujeito e não da instituição que o governa.

Do mesmo modo que esses dois autores, Freud e Foucault, Bourdieu também quer ir mais longe. Isto é, quer ir além da transparência da racionalidade, além da transparência do pensamento. Ele chega mesmo a bradar: “Nós temos uma visão intelectualista do pensamento” (Bourdieu, 2019 [1997], p.332). Destacando a necessidade de complexificar a condição humana para além do intelectualismo.

No final do trecho citado acima Bourdieu lembra da importância de calibrarmos nosso olhar para os sentimentos e as emoções. E é aqui que entramos no terreno nebuloso do ser humano, onde a racionalidade se mostra insuficiente para dar conta do real. Bourdieu tenta avançar até onde pode. Assim recorre à sua noção de habitus, ancorada nas teorias do adestramento e das disposições incorporadas que remontam sobretudo a Wittgenstein e Pierce – esse movimento está particularmente explícito nas páginas 333 a 335 (Bourdieu, 2019 [1997]).

Nesta chave de raciocínio a adesão do dominado à dominação seria fruto de “muitos atos praticados na infância, aquém da consciência. Os agentes [sociais] revelam, portanto, toda uma herança de disposições em grande parte herdadas, guardadas profundamente, e despertadas” (Bourdieu, 2019 [1997], p.335). Bourdieu, portanto, se vê na impossibilidade de ignorar um dos conceitos mais importantes da psicanálise: o inconsciente.

III. O inconsciente de Bourdieu

Mas “seria o inconsciente no sentido freudiano?” ele mesmo se pergunta, respondendo em seguida: “Penso que não” (Bourdieu, 2019 [1997], p.332). O inconsciente de Bourdieu parece se aproximar do corpo, no sentido de instituir esse corpo humano como detentor de outra razão, paralela à razão do pensamento. Durkheim é quem o ajuda a conceituar esse inconsciente:

Eu sempre cito esta fórmula de Durkheim a partir de um dos maiores livros de sociologia, A evolução pedagógica na França. Durkheim falou mais ou menos assim: o inconsciente é a história. O inconsciente é, portanto, o que a história deixou nos nossos cérebros. Assim, fazer história é fazer muito mais do que fazem, ou acreditam fazer, os historiadores. É muito mais do que narrar a história daquilo que aconteceu. É fazer a história daquilo que temos no cérebro. (Bourdieu, 2019 [1997], p.325-326)

Assim, a imagem cérebro/inconsciente aqui não deve ser vista como se fosse a morada do pensamento etéreo, desencarnado. Muito antes pelo contrário, esse cérebro/inconsciente Durkheimiano, e evocado por Bourdieu, é o lugar em que está guardada profundamente a herança das disposições. Disposições que em última instância são corporais. Essas disposições incorporadas e inconscientes parecem agir à revelia das decisões racionais dos sujeitos e é isso que chama a atenção de Bourdieu:

De qualquer maneira, a sociologia obriga a colocar a questão das condições de construção desse agente construtor [das ações, o sujeito]. E quando eu disse que ele [sujeito] escolhe, coloquei entre aspas para dizer que escolhe em sentido figurado, uma vez que é o depositário de uma pequena máquina de fazer escolhas. (Bourdieu, 2019 [1997], p.332)

Aqui aparece o antigo recurso à imagem da máquina. Remonta sem dúvida a Descartes, aquele que dá à máquina um estatuto verdadeiramente filosófico usando-a como metáfora para designar seres-vivos, sobretudo a partir da imagem do corpo-máquina em pleno século XVI. Bourdieu sabe que está fazendo recurso a um procedimento reprovável àquela altura de fins do século XX, muito embora pareça ignorar a razão mais profunda das limitações contidas na metáfora da máquina, conforme tentaremos esclarecer. Acompanhemos sua argumentação:

Bom, máquina é uma péssima metáfora, por que é mecanicista. Mas isso é para que me compreendam. Ou seja, ele [o sujeito] é o despositário de uma pequena máquina que escolhe por ele e que foi montada nele por meio de suas aprendizagens, experiências, à força de repetições. A máquina corporal seleciona instantaneamente a melhor solução. (Bourdieu, 2019 [1997], p.332)

Sabemos que essa explicação oferecida por Bourdieu precisa ser mais aprofundada. Não é porque é mecanicista que a metáfora é péssima. O que está verdadeiramente em jogo é o lugar que damos à consciência e ao sentido dentro de alguma Teoria do Sujeito, qualquer que seja.

IV. Um prisioneiro do sentido

É de se perguntar afinal sobre o porquê de Bourdieu lamentar o seguinte: “Portanto, estamos sempre na lógica da consciência que faz com que o próprio Marx somente veja saída na tomada de consciência”? (Bourdieu, 2019 [1997], p.333). Não deixa de ser interessante notar que o autor chegue a estabelecer essa frase como se ele próprio estivesse conseguindo estar de fora dessa lógica da consciência. Entrentanto, o que podemos verificar com muita clareza é que o Sr. Pierre Bourdieu, no entanto, avança menos do que pode imaginar sobre essa questão da redução do humano ao problema da consciência.

Avança, portanto, muito pouco já que quando vai explicar o que designa de disposições do corpo, que constituem o núcleo do que compreende como sendo o inconsciente, na verdade o que ele faz é oferecer a teoria de uma outra consciência, a consciência do corpo. Em última instância o que é apresentado como inconsciente é na verdade uma consciência escondida da consciência do pensamento. A consciência do corpo, ainda que escondida, assim também carregaria consigo um sentido, mesmo que não fosse acessível à razão do pensamento do sujeito.

É importante frisar que em Bourdieu essa razão do corpo, alienígena, estrangeira se quisermos, em relação à razão do pensamento do sujeito, pode ser perfeitamente explicada se se chega a compreender os processos de inculcação da máquina que nesse sujeito no período da infância “se instala”. Volta portanto, precisamente à questão de Marx: seria apenas uma questão de tomar consciência dessa outra consciência que habitaria o sujeito, na condição de máquina hospedeira, estrangeira, clandestina.

Ora todos nós sabemos que a máquina, qualquer uma delas, é sempre programada e se é programada, é programada para determinado fim. É dotada de uma finalidade. Existe por determinada razão. Tem um sentido implícito em sua existência. Dessa maneira, para Bourdieu o que é inconsciente funciona no mesmo registro do que é consciente. No registro lógico de uma máquina.

É daí que podemos afirmar que, à revelia de sua vontade, Bourdieu a seu modo não deixa também de ser um prisioneiro da razão, um prisioneiro da consciência lógica e do sentido.

V. Crítica a partir da teoria da sujeito advinda da psicanálise lacaniana

Bourdieu acertou quando afirmou que Freud e Foucault procuraram ver as coisas do lado do sujeito (ou agente social conforme prefere). Mas olhar as coisas do lado do sujeito significa ir ainda mais a fundo. Nesse desafio se empenhou Freud e mais tarde seu discípulo Lacan. Grosso modo podemos afirmar que a clínica psicanalítica não fez outra coisa senão confirmar o velho dito popular: “de perto ninguém é normal”.

Para a psicanálise o sintoma de cada sujeito define sua singularidade no mundo. Cada um carrega uma gramática própria norteada por um desejo opaco e singular. E o sintoma se mostra somente naquilo que foge ao sentido, naquilo que escapa ao sujeito, naquilo que falha em seu discurso, em seu fio narrativo, configurando a assertiva de que a verdade só se dá a ver no equívoco.

A clínica psicanalítica, mais do lado do sujeito como outrora elogiara Bourdieu, mostra que o corpo mais aparece não quando denuncia o adestramento ou disposições inculcadas a partir de uma vontade institucional, mas justamente quando dá contorno ao sintoma, quando se torna vestígio de algo que não se pode render à dominação. Algo do real que insiste em se insurgir. É daí que se pode afirmar que as psicoses são reações extremas à dominação, para usar esse conceito caro a Bourdieu.

Mas em geral as subversões à dominação são pouco perceptíveis. São simples efeito do ponto cego que demarca a especificidade de cada sujeito no mundo e, em torno do qual, se organizam os vários modos de existir. Um eixo arbitrário e não nomeável. Não passível de retificação. O real problema para qualquer instituição. A garantia perene de seu insucesso.

Por não perceber esse tipo de questão, “mais do lado do sujeito”, é que Bourdieu teve de findar o seu texto no seguinte ponto: “De onde poderia vir o colapso de uma crença? Como isso ocorre? Penso que isso é extremamente importante e difícil, mas paro aqui” (Bourdieu, 2019 [1997], p.339).

Referência Bibliográfica

Bourdieu, Pierre. A dominação. (1997) In: Valle, Ione Ribeiro & Soulié, Charles. Pierre Bourdieu: uma sociologia ambiciosa da educação. Florianópolis: Ed. UFSC, 2019. p.305-339


[1] Doutor em Educação

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