E a Melanina?

 

José Adailton Vieira Aragão Melo[1]

 

Outro dia estava conversando com minha amiga e vizinha sobre as questões étnicos raciais, o preconceito racial e a cor. Entre eu e ela havia uma variação de cor, e com isso surge a questão de quem era mais negro? Segundo sua ótica eu sou pardo. Mais que cor é essa? Toda vez que ouço a palavra “pardo” já lembro do papel pardo, aquele utilizado nas escolas, sua cor fica entre o marrom e o bege, com tons de amarelo terroso. Pardo vem do latim Pardus (leo pardus). No dicionário Dicio[2] significa: “Cuja cor está entre o branco e o preto. Cuja cor varia entre o amarelo ou o marrom-escuro: envelopes pardos. [Agricultura] Diz-se do arroz cuja casca é retirada, sem polimento. De cor relativamente escura. Pessoa que descende da mistura entre brancos e negros”. Ainda é sinônimo de: cinzento, mestiço, leopardo. No dicionário Michaelis[3] temos praticamente as mesmas definições, com a diferença de que foi acrescentado: “De cor entre o branco e o preto, meio escura; tuíra (De cor indefinida, semelhante ao preto desbotado). Branco sujo. De cor fosca, variando entre o amarelo e o marrom escuro. Diz-se de qualquer dessas cores”. Além do velho e bom arroz sem casca e sem polimento. Preciso encontrar uma paleta de cores, aproximar minha pele e ver de qual cor eu sou.

Após essa discussão, embora de forma insipiente e sem aprofundamentos, outra questão veio à tona. Tenho cabelo liso e nariz afilado, por isso sou menos negro, segundo minha amiga. Ela tem cabelos crespos e nariz arredondado, por isso se considera mais negra que eu. Minha amiga ainda complementa: “Você pode passar despercebido”. Questionei se esses critérios são válidos para definir quem é negro e quem não é? Ela não soube responder, mas acrescentou que as pessoas com cabelos crespos e nariz arredondado sofrem mais preconceitos. Sem sombra de dúvidas sofrem mais discriminação racial do que os que não tem essas características físicas, mas e a cor? E a melanina? Ela é quem define a cor dos olhos, cabelos, pele, cílios, sobrancelhas e pelos. Quanto mais melanina mais negro e menos melanina é menos negro? Só sei que nunca me identifiquei com os brancos (etnia) e com a cor branca, a não ser meus dentes (levemente amarelado) e a esclera dos meus olhos. Ainda fiquei pensando: Quando estamos fora do Brasil, qual a cor que recebemos, somos rotulados? Com base em alguns relatos, tendo muita ou pouca melanina, você é considerado negro. Se for um negro albino, provavelmente passará despercebido.

Por falar em melanina, outra questão vem a calhar: A pessoa albina tem que cor? Se pensarmos pelo fenótipo seria branca, se for pelo genótipo seria variável e indefinida a priori. Seria uma pessoa sem pigmentação, despigmentada, sem cor definida? Para afirmar que cor o indivíduo albino teria se tivesse melanina, seria preciso examinar sua árvore genealógica, seus laços de parentesco, a questão consanguínea. Conforme pesquisas anteriores, a incidência maior do nascimento das pessoas albinas ocorre na população negra, logo tem-se o albino negro, o negro de pele branca, o negro branco? Como menciona Ninou Chelala (2007) em seu livro sobre as pessoas albinas em Camarões na África: “A enigmática brancura negra”. Podemos pensar no indivíduo que é negro e branco concomitantemente, mas sem ter os privilégios dos grupos étnicos brancos. Essa hipótese também é encontrada durante minha pesquisa de campo, uma vez que a maioria dos indivíduos entrevistados tinham as características físicas mencionada no início desse texto: cabelos crespos, nariz arredondado e, sobretudo, a família composta por negros. Assim como também tinha nariz afilado, cabelos lisos e principalmente, núcleo familiar de etnia negra.

Durante a pesquisa, percebi que todos os familiares (não albinos) tinham produção de melanina ou como consta no senso do IBGE, eram de cor: pretos e pardos. Nesse meio tem-se uma pessoa sem pigmentação, mas como devemos considerá-la? Branca, preta, parda? E qual sua etnia? São indagações que precisamos refletir e talvez em algum momento possamos responder. Por ora vamos apenas pensar sobre que cor temos? Até porque se formos analisar a cor das pessoas de forma isoladas, individuais e sem correlação familiar, étnica ou até mesmo com a genética (segundo os especialistas), poderemos cair na armadilha de se basear apenas nos fenótipos, do visível, aparente. Nem estou levantando aqui a questão da construção da identidade, o jogo da identidade: nós e os outros, os sujeitos descentrados e deslocados, como menciona Stuart Hall (2015) e também Paul Gilroy (2001, 2007).

Ainda sobre as pessoas albinas e a melanina (ou ausência dela), fico pensando o que diria o conceituado Frantz Fanon (1925-1961) sobre as pessoas albinas, afinal de contas ele é reconhecido mundialmente por suas obras e, sobretudo, o aclamado livro: Pele Negra, Máscaras Brancas, lançado em 1952 e que trata sobre o racismo colonial e a dicotomia entre brancos e negros (embora não seja exclusivamente sobre isso). Qual seria o título do seu livro se tivesse pesquisado/estudado os indivíduos albinos na comunidade negra? “Pele branca, máscaras negras ou brancas”? Como teria explicado que um branco é negro? Ou faria uma análise além do aparente e poderia pensar num indivíduo que é ao mesmo tempo negro e branco? Que papel a pessoa albina assumiria diante do outro (negros e brancos)? Enfim, infelizmente ele não está mais entre nós (fisicamente) para termos debates sobre o assunto. Mas fica as indagações para que outras pessoas possam estudar e quem sabe elaborar explicações e estudos mais aprofundados.

Vale destacar a obra da Ana Silva (2007) e que trata da branquitude e branqueamento, no qual discute sobre as pessoas do fenótipo brancos e assemelhados (excluindo as pessoas albinas), alteridade e a cor. A perspectiva da autora é problematizar a representação das pessoas brancas nos livros didáticos e de como isso afeta o imaginário social da população. Ana Silva ressalta a posição ocupada pelos brancos e negros, sendo o primeiro no topo da pirâmide e o segundo na base. Mas faço um questionamento, se a pessoa branca tem tantos privilégios e fica no topo da “cadeia racial”, por que as pessoas albinas não ocupam este posto? Se os brancos têm muita representação nos livros didáticos e os negros têm poucos, imagina as pessoas albinas? Quantas obras existem sobre as pessoas albinas?

Recentemente recebi um livro de uma editora que, após assistirem uma live sobre a (in)visibilidade da população albina e que participei na condição de palestrante, entraram em contato e enviaram-me o exemplar: A menina sem cor (2020). Acredito que seja o segundo livro infantil que trata do tema: albinismo. Embora o título cause estranhamentos entre as pessoas albinas que receberam também o exemplar, pois a questão da cor é algo complexo e em si tratando das pessoas albinas é ainda mais. É possível existir o indivíduo sem cor? Ao ler o livro percebe-se que a personagem principal é uma criança com melanina e que vê no outro a diferença da cor e ao encontrar uma menina albina entra em cena o jogo da diferença, identitária e de cor. Uma quer a cor da outra, uma vê os privilégios (lúdicos) da cor da pele da outra, uma pode tomar sol e a outra deve evitar. Nas últimas páginas as personagens principais (negra e albina) conversam e quando a criança albina afirma que também é negra e acha que “quando nasceu a tinta havia acabado”. Então ela nasceu com defeito? O provocativo é que a personagem principal, uma criança negra é que recebe o título de criança sem cor, pois ela queria ter a cor das outras pessoas. Esse livro até pode funcionar para trabalhar com as crianças sobre a identidade, a pluralidade das cores dos indivíduos (menos afirmar que existe um indivíduo sem cor), e para falar sobre o albinismo ainda é preciso aprofundamentos.

Seguindo a discussão sobre livros infantis que tratam sobre a cor, o primeiro livro infantil que tive conhecimento foi: Pedrinho – o menino albino (2011) da Patrícia Simone de Prado. Nesse livro o Pedrinho tem pais negros e sente-se diferente por conta da cor. Isso não trazia incômodos, até que foi questionado pela sua brancura e através de sua mãe começa a fazer uma viagem imaginário por dentro do seu corpo para entender o que é o albinismo e o porquê da sua cor. Pedrinho chorava ao ouvir brincadeiras com sua cor. Essa obra trabalha bem a questão da identidade racial, sem colocar a personagem como uma pessoa exótica, cheio de poderes mágicos, a não ser sua imaginação.  Talvez seja o livro com mais base em termos teóricos-didáticos para explicar de forma lúdica o preconceito racial e as diferenças raciais e da cor.

Que cor eu teria se tivesse melanina?

Essa indagação foi feita por minha amiga Laudisseia, mulher albina, pedagoga, mãe do João e servidora do TRT/MT. Em uma das nossas longas conversas, ela fez a pergunta em tons de risadas e piadas, ficou na dúvida de qual seria sua cor se tivesse melanina. Ela lembra que tem uma variedade de cor/etnia entre os parentes maternos e paternos, sendo composta por: “negros, indígenas, brancos e até vermelhos”, diz em tom de brincadeira. Por alguns instantes ela fica em silêncio, pensativa e ratifica sua dúvida dizendo: “realmente não sei que cor teria se tivesse melanina. Tá ai uma dúvida que tenho”.

A Laudisseia é ativista, feminista e gosta de ressaltar a beleza da mulher albina, tem como frase particular: “Sou a albina mais bonita do judiciário brasileiro e quiçá do mundo”, essa frase é em resposta a um fato que a marcou até hoje. Um belo dia andando pela rua, uma senhora se aproxima e fala: “Você é tão bonita, nem parece ser albina”. Essas palavras foram recebidas com muita revolta, pois para ela é inadmissível que as pessoas não vejam a beleza da pessoa albina. Infelizmente os indivíduos associam as pessoas albinas aos fatores patológicos, remetendo sua cor (pouca ou nenhuma melanina) à algum tipo de doença, e, “contagiosa”. Alguns relatos das pessoas albinas sobre sua cor e a interelação com os não albinos, é corriqueiro falar-se sobre o medo de algumas pessoas em tocarem em suas peles, com medo de ficarem brancas, albinas. Será que a cor é contagiosa? Devem pensar as pessoas que por falta de conhecimento acreditam nisso.

Essas indagações e outras me provocaram a pensar sobre a cor, a melanina e as pessoas albinas. Quando penso sobre isso, também penso sobre minha cor e a relação com a cor do outro, a variação de cor, a alteridade, a interação entre pessoas de cores diferentes, a nossa cor vista de fora (do Brasil), aqui vou chamar de intercor, assim como fez Pierre Bourdieu em criar novas palavras. Talvez não tenha cabedal intelectual e acadêmico para tal ousadia, afinal, quem sou eu para criar uma palavra? Mas como disse um amigo areiense, “devemos nos entregar ao caos” e deixar que as coisas aconteçam. Enquanto isso vou pensando sobre a melanina ou ausência dela.

 

REFERÊNCIAS

 

CHELALA, Ninou. – L’albinos en Afrique. La blancheur noire énigmatique. Paris, L’Harmattan, 2007, 220 p., bibl.

 

EMEDIATO, Fernanda. A menina sem cor. Ilustrado por Yasmin Mundaca. São Paulo: Troia Editora, 2020.

 

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas / Frantz Fanon ; tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 194.

 

GILROY, Paul. Entre campos: nações, cultura e o fascínio da raça. São Paulo: Annablume, 2007.

 

GILROY, Paul. Senhores, senhoras, escravos. In. ______. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34; UCAM/Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001, pp 101-155.

 

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.

 

MELO, J.A.V. Aragão. 2017. “Guerreiros do Sol e da Lua”: um estudo sobre os albinos. Republico of Moldova: Novas Edições Acadêmicas.

 

MELO, J.A.V. Aragão. 2018. PESSOAS ALBINAS – Nos Interstícios da (In)Visibilidade e Estigma. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba.

 

PRADO, Patrícia. Pedrinho – o menino albino, Editora Nandyala – Belo Horizonte, 2011.

 

SILVA, Ana. Branqueamento e branquitude: conceitos básicos na formação para a
alteridade. In: Memória e formação de professores. Salvador: EDUFBA, 2007. 310 p.

 

 

[1] Doutorando em Estudos de Cultura Contemporânea da Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. E-mail: [email protected]

[2] Fonte: www.dicio.com.br/pardo/.

[3] Fonte: www.michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=Pardo.

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