Discussões Possíveis à Clínica Psicanalítica a Partir de “Persona”

Marcos Vinício Anchieta da Silva Júnior[1]
Rafael Brito Frazilio da Silva
Sabrina Maria Souza Tavares

RESUMO

Persona é um longa-metragem produzido por Ingmar Bergman e lançado originalmente em 1966. Bergman buscou em suas produções trabalhar com questões como vida-morte, tempo e identidade, todas de importância para a discussão psicanalítica. O objetivo do presente estudo foi desenvolver uma crítica cinematográfica da obra à luz de conceitos psicanalíticos como o mecanismo de defesa da negação, a transferência, a contratransferência e o insight. Ainda, através do resgate de símbolos presentes no filme, discutir possíveis implicações destas representações para o trabalho clínico psicanalítico.

Palavras-chave: Persona; negação; transferência; contratransferência; insight.

ABSTRACT

Persona is a feature film produced by by Ingmar Bergman and originally released in 1966. Bergman intented to explore questions like death-life, time and identity on his productions, all of them important to psychoanalisis discussion. The following study intented to provide a Persona cinematographical criticism based on psychoanalitical concepts as like as the defense mechanism of negation, transference and countertransference and insight. Furthermore, using rescue of symbols present on the movie, discuss possible applications of these representations in psychoanalisis clinical work.

Keywords: Persona; negation; transference; countertransference; insight.

INTRODUÇÃO: A OBRA

Nesta seção, abordaremos as características cinematográficas da obra a ser analisada, bem como informações sobre o impacto contextual à luz da época de seu lançamento. Falaremos também, brevemente, sobre o diretor e idealizador da película e a importância de sua história de vida para a construção do roteiro.

O inquietante “Persona”, dirigido por Ingmar Bergman (1918-2007) e lançado originalmente 1966, está para o cinema sueco como uma das obras cinematográficas de maior relevância na história do país. Em uma primeira pincelada, conta a história de uma mulher que, ao tentar entender outra mulher que não fala, perde-se em sua identidade. No Brasil, o filme foi lançado com o patético título de “Quando duas mulheres pecam”que, entre outras conotações, indica uma leitura reducionista da obra que indica um relacionamento romântico entre as duas personagens. A palavra “pecam” muito bem expressa parte do imaginário social da época no que se refere à concepção sobre um relacionamento homoafetivo na década de 60. E é interessante observar que ao reduzir Persona a esta interpretação, fecham-se os olhos para toda a riqueza narrativa do filme e a margem para inúmeras outras interpretações de fato produtivas. O próprio Ingmar Bergman sintetiza o filme: “[…] é uma história de uma pessoa que fala de outra pessoa que não diz nada. Em seguida, elas comparam suas mãos e finalmente elas se fundem uma na outra”. (BERGMAN, 1962).

Alma (Bibi Andersson) é enfermeira de um hospital psiquiátrico. Sua superior a designa para tratar de um caso em específico, uma atriz, Elisabeth Vogler (Liv Ullmann), que para de falar e apresenta características que se assemelham aos relatos freudianos de mulheres histéricas. Vogler há tempos não se comunica de maneira verbal. Não apresenta indícios afetivos quanto ao filho que deixou, tampouco ao casamento que já ia mal. Internada na instituição religiosa que já não sabe o que fazer com a paciente, passa a ser cuidada por Alma, mulher jovem e muito comunicativa que, no início, apresenta sinais de querer “curar” Elisabeth de sua condição.

Na sequência, ambas vão para uma espécie de retiro, na costa sueca, dividindo uma casa de praia em total isolamento. A convivência entre as duas mulheres mistura amor e ódio e Alma acredita que ao inteirar Elisabeth sobre sua vida, a deixará mais confortável e ela poderá voltar a falar. No entanto, as conversas revelam Alma como uma mulher muito culpada sobre erros passados, incerta sobre seu futuro e perdida no tempo-espaço. Apesar dos diálogos fortes e marcantes de Alma, tentando incessantemente despertar em Elisabeth alguma reação que a motive a falar, o longa termina com Vogler tendo se utilizado de palavras apenas três vezes.

Não foi a primeira vez que questões existenciais foram o cerne das produções de Bergman, que durante a carreira explorou reticências como vida-morte; sombra-luz; se descobrir-se perder. De mesmo modo que os acontecimentos de sua vida sempre o guiaram imaginativamente para as produções cinematográficas, e Persona não foge à regra. Na mesma entrevista, concedida no ano de 1969, Bergman diz:

Em janeiro, fiquei doente; no começo era um simples resfriado, tinha febre, depois, em março, meu estado se agravou e revelou-se que eu estava com broncopneumonia já há algum tempo. […] surgiram complicações por causa da penicilina, contraí uma infecção por vírus no ouvido, o que me dava vertigens. […] Os Antropófagos devia ser uma grande produção e, pelas circunstâncias, o projeto foi abandonado em março. […] Bibi e Liv tinham ficado amigas […] e tinha uma foto delas na frente de uma parede. Elas estavam sentadas, se bronzeando e quando vi esta fotografia, pensei imediatamente “meu Deus, como são parecidas!”. Havia uma semelhança bastante estranha. […] A semelhança dessas duas mulheres me intrigava. Eu achava que seria divertido escrever alguma coisa sobre duas pessoas que perdem sua identidade respectiva nas suas relações, e que de certa forma também se parecem. De repente, tive uma ideia. Elas estavam sentadas e comparavam suas mãos e tinham um grande chapéu na cabeça.

Em atributos técnicos, não-raro se percebe a razão pela aclamação do filme mais famoso de Bergman. A fotografia impecável acompanha um design de produção que muito bem retrata a época e o projeto é coroado por atuações deslumbrantes de Bibi Andersson e Liv Ullmann, que dividem o protagonismo. Além da direção, o roteiro também leva a assinatura de Bergman, que divide a cinematografia com o brilhante Sven Nykvist, que assina a fotografia. Evidentemente, a paleta de cores do filme é preta e branca, o que em nada obscura a ambiência fílmica empregada pelo sueco em toda a construção narrativa.

No caso da fotografia em específico, há um detalhe que merece ser revisitado e integra uma observação importante na discussão sobre o filme: Nykvist parece tentar mostrar a incompletude das personagens em cenas sequenciadas. Em alguns momentos, um feixe de luz faz com que no primeiro plano só se possa observar metade do rosto da personagem; em outros momentos, o fenômeno ocorre novamente através da ausência de luz, sendo a sombra quem cobre uma parte do rosto fragmentado. É associativo pensar em identidade quando se fala de rosto e, a perspicácia em introduzir uma das discussões centrais do filme através de projeções sutis como essa merece ser registrado.

Existe uma ideia da persona enquanto máscara social no filme. Sontag (1987) explica que a ideia de Persona é mostrar as tentativas de ambas as personagens em ocupar lugares diferentes em relação ao plano real. Incisivamente, aponta que a ambiência da discussão está sob o conflito entre esconder e manifestar:

[…] a palavra latina persona, da qual deriva o termo inglês person (pessoa), significa máscara usada por um ator. Ser uma pessoa é, assim, possuir uma máscara; em Persona ambas as mulheres usam máscaras. A de Elisabet é sua mudez. A de Alma, sua saúde, seu otimismo, sua vida normal; está entrosada, gosta de seu trabalho, desempenha-o bem e fala de tudo isso etc. (SONTAG, 1987, p. 133).

“PERSONA” E CORRELAÇÕES TEÓRICAS POSSÍVEIS

Nesta seção, iniciaremos as correlações entre as características do filme e pressupostos teóricos. A ideia é resgatar na obra elementos que permitam interpretá-los à luz destes pressupostos teóricos que buscamos referenciar a discussão.

Ao pensar em persona enquanto conceito, é associativo pensar em Carl Jung. O suíço, visto por Freud por muito tempo como seu discípulo e sucessor teórico (FADIMAN & FRAGER, 1939), foi quem melhor definiu o conceito de personano universo psicológico. Entende que é a forma pela qual nos apresentamos ao mundo, como o caráter que assumimos. A persona permite a relação com o outro. Tem aspectos positivos e negativos, podendo uma persona dominante abafar o indivíduo e aqueles que se identificam com sua persona tendem a se ver apenas nos termos superficiais de seus papéis sociais e de sua fachada. A definição de Bueno (2009) traz uma ideia de persona enquanto

(…) um complexo de personalidade onde o indivíduo adota conscientemente uma personalidade artificial ou mascarada, contrária aos seus traços de caráter, para se proteger, se defender ou para tentar se adaptar ao seu círculo.  Quando estamos isolados, em silêncio, sozinhos, nossa persona se manifesta de modo distinto de quando estamos na rua, no trabalho.  Há, assim, uma persona para o convívio social e outra para quando estamos sozinhos (BUENO, 2009, p. 5).

Ampliando tal teorização, é possível entender persona como um complicado sistema de relação entre a consciência individual e o meio social. Uma espécie de máscara que atua produzindo um efeito sobre o outro, blindando o ego. Por outro lado, pode ocultar a verdadeira natureza do self. Atua protegendo o ego das diversas forças e atitudes sociais que o invade. Não deixa de ser um instrumento precioso para a comunicação (JUNG, 1998).

Uma das margens que o filme dá é o fato da mudez — ou ao menos ausência da fala — de Elisabeth ter acontecido após uma interpretação do espetáculo Electra. Existe um peso narrativo no ar quando são apresentados ao expectador seu contexto familiar, seu filho pequeno e os possíveis desdobramentos que estas responsabilidades a trariam. O marido parece ser um sujeito pragmático. A primeira questão a surgir é se, de fato, Elisabeth teria desenvolvido uma persona para blindar o ego da urgência daquelas situações sociais que ela por suposto não soubesse como lidar. Sendo assim, a premissa se relaciona com a ideia de ter assumido uma persona de uma mulher calada, passional, doente e indolor.

Desde o primeiro momento em que a personagem de Vogler é apresentada ao expectador, há uma contraposição factual: de um lado, a narrativa de quem “era” Elisabeth antes do trauma: a atriz competente, afetuosa com a família e que portara uma vida ativa. Do outro, temos uma mulher reclusa que parece negar as atribuições sobre quem era. Partindo daí, poderíamos conjecturar uma correlação sob a ótica da utilização de um mecanismo de defesa do ego para a supressão de iminências da realidade vivida por Vogler, o sendo este o da negação. Freud (2014) define o conceito de negação enquanto uma maneira de se tomar conhecimento do reprimido, de modo que o conteúdo da representação ou do pensamento reprimido possa abrir caminho até a consciência, com a condição de ser negado (FREUD, 2014, p.10).

É interessante ressaltar a importância da questão da negação para além do contexto clínico. Freud (2014) percebe a importância desta questão no tocante às atribuições do juízo, mencionando que:

A função do juízo tem essencialmente duas decisões a tomar: ou ela deve conferir ou recusar a uma coisa uma determinada qualidade e deve admitir ou contestar se uma representação tem ou não existência na realidade (FREUD, 2014, p. 23).

Ripoll (2014), sobre a temática do juízo na negação, discute a origem psicológica da função intelectual do juízo. No sentido de que quando o sujeito nega algo, de fato, é como se já estivesse afirmando que existe ali uma relação de sentido que o próprio sujeito, a tendo percebido, opta por reprimir. Existem traços no filme que podem nos levar a crer que Vogler sabia exatamente o que se passava, a todo momento. No entanto, parecia estar centrada em si.

Elisabeth Vogler aparece rindo sozinha, em alguns momentos. Mas o que parece ser mais factual para servir como um gancho e, assim, discutamos a ideia de estar centrada em si para concretizar repetidamente a negação, é um comportamento inadvertido em específico que executa: perto do fim do período de “retiro” que passa com Alma na costa sueca, Vogler escreve para a médica supervisora — aquela que designara Alma para cuidar de Elisabeth — que a enfermeira era um caso interessante de estudo. Novamente recorrendo à descrição freudiana do componente de juízo:

Como é tarefa da função intelectual do juízo afirmar ou negar conteúdos de pensamento, as observações precedentes nos conduziram à origem psicológica dessa função. Negar algo no juízo no fundo significa: isto é uma coisa que eu preferiria reprimir. […] Por meio do símbolo da negação, o pensamento se liberta das limitações da repressão e se enriquece de conteúdos de que não pode prescindir para o seu desempenho (FREUD, 2014, p. 11).

Dentre as múltiplas possibilidades de interpretar esta obra, uma é bastante pertinente a ser analisada. O silêncio de Elisabeth e a reação de Alma. Ao considerar o filme como uma sessão de análise, em que ambas podem ocupar o lugar de analista e analisando, é possível perceber a importância e as nuances do silêncio. Elisabeth, cansada de viver uma vida de mentiras, decide por não usar mais palavras, máscaras ou personas. Opta por não mais representar, mas sim viver a sua verdade, fazendo do seu silêncio um escudo. Por outro lado, Alma, forçada a voltar para si mesma em decorrência do mutismo de Vogler, percebe-se perdida ao retirar a sua máscara e entrar em contato com suas questões antes latentes.

A compreensão da importância e o advento do silêncio em uma sessão de análise fazem-se necessária para uma melhor interpretação neste momento. Para Freud, o silêncio aparecia como uma resistência à associação livre, sendo ele a incapacidade de dizer o que se pensa, não ter nada a dizer ou uma espécie de esquecimento. O surgimento dessas lacunas na associação livre logo se revelou de extrema importância para o trabalho na clínica, pois Freud reconheceu nelas um indicativo de proximidade do recalcado, daquilo que estava silenciado justamente por ser o cerne do sofrimento atual do paciente e, por isso, estaria sendo evitado pelo aparelho psíquico (FREUD, 1914).

De acordo com Jacques Lacan (1964-1965) há duas formas do silêncio: no latim, taceo, a dimensão do silêncio que é aquela da palavra não dita, e o sileo, um silêncio estruturante, que aponta para uma ausência essencial da palavra, uma falta de significação, uma ausência de simbolização (LACAN, 1967). O autor versa a respeito da origem desse silêncio estruturante como sendo o grito, uma expressão primitiva de necessidade do recém-nascido que espera do outro um ato interpretativo, que só pode se dar na linguagem. Sendo assim, esse ato tem como efeito transmutar o grito em demanda, atribuindo um significado de pedido de um sujeito. 

Ao fazer uma análise do filme levando em consideração a analogia a uma sessão de análise em que Elisabeth seja o analisando, é interessante a interpretação de seu mutismo. Este pode ser entendido à luz do sileo, a ausência de uma simbolização, ou seja, um reconhecimento. Aqui, traduz- se a necessidade, por parte da senhora Vogler, de que o analista – no caso Alma – reconheça o seu silêncio de modo a interpretar as suas supostas necessidades. Esse caso pode levar o nome de silêncio simbiótico (ZIMERMAN, 2010), que significa o julgamento por parte do analisando de que o analista tem o dever de adivinhar as suas demandas não satisfeitas.

Além dessa classificação, outra também parece ser coerente: a comunicação primitiva. O silêncio poderia despertar no analista, através de efeitos contratransferenciais, a possibilidade de o paciente estar fazendo uma comunicação de algo que está inconsciente e que não consegue expressar com palavras (ZIMERMAN, 2010). Nesse caso, Elisabeth estaria utilizando do seu silêncio para transparecer, ainda que de maneira não consciente, o seu desespero ou sofrimento.

Neste momento, outra personagem será o foco da análise, a enfermeira Alma. Assim como é exposto no filme, a enfermeira passa a ser analisada por Elisabeth, de modo inverso ao que realmente deveria acontecer. É importante atentar-se ao papel do silêncio na relação de ambas, pois essa foi a razão da formação do vínculo entre as duas mulheres. A senhora Vogler, que por sua vez estava inserida no seu mundo silencioso, e Alma, que na tentativa de trazer à tona a voz de sua companheira, sentiu a necessidade de quebrar o silêncio.

Assim como pode ocorrer em uma sessão de análise, Elisabeth, com o seu mutismo, incitou a fala de Alma. O silêncio da ‘analista’, resguardando-se de qualquer julgamento, impele a paciente a dizer tudo que lhe vem à cabeça, retirando as suas máscaras e entrando em contato com o seu lado sombrio. Sendo possível criar as condições para o estabelecimento de uma transferência positiva e negativa, de amor e ódio, imaginária e simbólica, abrindo o seu inconsciente para uma catarse.

Ao mesmo tempo em que o discurso de Alma se torna cada vez mais intenso, é notório o aparecimento de um elemento fundamental em toda análise: o insight.

Em inglês, essa palavra significa visão interna, uma junção do prefixo in (dentro) e o sufixo sight (vista). Esse termo foi criado para expressar ideias que pertencem integralmente a Freud, e quer dizer, então, a compreensão que o sujeito tem a respeito do seu mundo interno, sua vida psíquica. O insight serve para apreender um significado a que não se podia ter acesso até aquele momento. No entanto, para que esse elemento seja alcançado, é necessária a superação de resistências (EIZIRIK, DE AGUIAR, SCHESTATSKY, 2015).

No texto “Inibições, sintomas e ansiedade”, Freud (1970-1988) faz uma observação importante acerca da resistência na análise. Ele afirma que o ego tem uma dificuldade em dirigir sua atenção para percepções e ideias que foram estabelecidas por ele como uma norma para evitar, ou então reconhecer como pertencendo a si próprio impulsos que são o contrário dos que ele já conhece como seus. Por isso, a luta que existe contra a resistência na análise toma por base esse ponto de vista dos fatos. Caso a resistência seja inconsciente, como tão frequentemente acontece em virtude da sua ligação com o material reprimido, há de torná-la consciente.

Superada essa resistência, o paciente encontra-se pronto para vivenciar os insights que a análise há de promover. Nesse sentido, quando Alma, ainda que na intenção de incitar a fala de Vogler, liberta-se de suas amarras e inicia os seus relatos, torna-se evidente o seu sofrimento psíquico através de seus insights.

Ao entrar em contato com seu self, é possível nos remeter a ideia junguiana de sombra no plano inconsciente. A enfermeira, que mantinha a sua vida de aparências, ao despir-se de suas personas, entrando em contato com sua culpa, suas experiências passadas, suas energias internas, memórias e desejos, entra em conflito com suas instâncias psíquicas. Seu ego, agora livre de resistências e tomado por uma ansiedade, revela à consciência a sua sombra.

No entanto, a maneira que Alma resistiu em trazer à tona essa realidade interna fez com que ela não reconhecesse como sua própria sombra, projetando-a em Elisabeth. A vivência emocional provinda do insight, que a enfermeira, agora paciente, foi tomada, mostra-se tão conflitante a ponto de não ser suportada em si e, consequentemente, é atribuída ao outro indivíduo. Aqui se revela o motivo dos constantes insultos que Elisabeth recebe, tendo em vista que ela é a sombra que Alma recusa aceitar. O momento da obra em que isso se torna nítido se faz presente no instante em que Alma relembra sua aversão por seu filho. Assim como a atriz, que não desejara ser mãe, mas por imposições da sociedade se rendeu a tal feito.

Toda essa interpretação teórica não seria possível caso não fosse identificado na relação entre Alma e Elisabeth um forte processo transferencial. Particularmente no caso de Alma, o fenômeno transferencial se apresenta como pedra angular para o desenvolvimento de toda a trama do filme.

Podemos dizer que a enfermeira já tinha uma predisposição para um processo transferencial positivo com Vogler, uma vez que já havia ouvido falar sobre a atriz e guardava uma certa admiração pelos papeis desempenhados por ela no cinema. Dessa forma, podemos afirmar que já havia uma pré-transferência, ou seja já havia a manifestação transferencial antes mesmo do contato entre a paciente e a enfermeira, ainda que de maneira muito superficial. Mesmo sem ter dito uma palavra, Alma abre-se para a personagem como nunca o fez para ninguém em toda a sua vida. Em certas passagens do filme chega a afirmar que ama Elisabeth e a defender que ela seria uma mulher muito mais emancipada do que ela, atribuindo-a características quase fantásticas, para além dos limites humanos.

Esse forte processo transferencial encontra raiz não só na imagem pré-concebida de uma atriz famosa, mas também no próprio silêncio de Elisabeth e rapidamente se transforma em uma neurose de transferência. Ao manter uma postura de quase ausência, Elisabeth Vogler abre espaço para que haja uma projeção inconsciente de Alma acerca de suas características, permitindo distorções perspectivas. Dessa forma, alma imbui sua enferma de características que transpassam seu inconsciente, transformando-a naquilo que ela deseja ver. Em um processo terapêutico, Freud afirma que uma transferência positiva é, talvez, a etapa mais importante para um processo analítico, no qual um analista devidamente treinado consegue garantir a dada projeção (Freud, 1938). Contudo, a situação do filme não ocorre em um setting terapêutico, mas sim em uma relação cotidiana entre uma paciente e sua enfermeira. Nesse contexto, tal relação mostra-se perigosa ao passo que a falsa percepção do outro não pode se manter por muito tempo fora da clínica. Ou seja, não há a possibilidade do manejo do processo transferencial. Assim, seria inevitável que, à medida que Alma fosse conhecendo Vogler de fato, a fantasia que havia construído acerca da atriz se mostrasse errônea (Palhares, 2008).

Assim, notamos o caráter idealizador da transferência por parte de Alma. A intensa idealização leva a personagem a utilizar Vogler como norte de todos os seus pensamentos e decisões remetendo aquilo que Kohut chama de imago parental idealizada. Isto é, a estruturação do ego de Alma sofre uma espécie de dependência estrutural daquilo que foi idealizado sobre a imagem de Vogler (Zimerman, 2010).

Quando a enfermeira lê, secretamente, uma carta escrita pela atriz ao seu marido, na qual afirma a sua convivência com Elisabeth e todas as suas impressões sobre a relação desenvolvida entre as duas, tal transferência se quebra. Na carta, além de tratar sobre suas questões pessoais, Elisabeth afirma ao marido explicitamente que está desempenhando uma espécie de análise com a sua enfermeira (como já suspeitado pelos espectadores ao assistirem o filme). Tal notícia vem como um choque para Alma, que claramente sofre uma desestruturação psíquica, até então apoiada na transferência idealizadora sobre Vogler. A finalização precoce e abrupta de um processo inconsciente de transferência leva o filme ao seu clímax. Alma, ao se deparar com a pessoa real de Vogler agride fisicamente a personagem e passa a viver um momento psíquico conturbado de amor e ódio. A impressão que se passa é a de que a personagem passa a confundir a pessoa de Vogler, aquela idealizada pela transferência e a sua própria imagem.

A evidente desestruturação psíquica de Alma (remetente ao imago parental idealizado) leva-a a surtos psicóticos, em que a personagem não se entende mais em uma realidade cronológica e passa a se imaginar nos papéis que outrora havia atribuído à Vogler idealizada. Nesse sentido, é possível identificar que nos planos sequenciais do filme uma personagem se sobrepõe a outra, passando a impressão de que as duas personagens se tratam da mesma pessoa. Tal construção, quando observado pelo ponto de vista da desestruturação psíquica de Alma, faz todo o sentido.

REFERÊNCIAS

BUENO, Bianca. Persona: Bergman, Jung e Kierkegaard, 2009.

EIZIRIK, Cláudio Laks; DE AGUIAR, Rogério Wolf; SCHESTATSKY, Sidnei S. Psicoterapia de Orientação Analítica: fundamentos teóricos e clínicos. Artmed Editora, 2015.

FADIMAN, James. & Frager, Robert. Teorias da Personalidade. São Paulo: Harbra, 1939.

JUNG, Carl. Gustav. Fundamentos de psicologia analítica. Rio de Janeiro: Vozes, 1968.

FREUD, Sigmund. A negação. São Paulo: Cosac Naify, 1925.

FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e ansiedade. In: Freud S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago; 1970-1988. v. 20.

FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar. Obras completas, v. 12, p. 145 157, 1914. Ripoll, L. (2014). A negação freudiana: fissuras na razão cartesiana e na neutralidade científica. Rio de Janeiro: EPOS.

LACAN, Jaques. La logique du fantasme. Seminário inédito. (mimeo), 1966-1967.

LACAN, Jaques. Problemas cruciais para a psicanálise. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 1964.

NETTO, Geraldino A. Ferreira, Wim Wenders, psicanálise e cinema, Campinas, Pontes, 2017.

PALHARES, Maria do Carmo Andrade. Transferência e Contratransferência: a clínica viva. Rev. bras. psicanál v.42 n.1 São Paulo mar. 2008

SONTAG, Susan. A vontade radical. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda., 1987.

ZIMERMAN, David E. Fundamentos Psicanalíticos: Teoria, Técnica, Clínica–Uma Abordagem Didática: Teoria, Técnica, Clínica–Uma Abordagem Didática. Artmed Editora, 2010.


[1] Graduandos em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba

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