Kátia Cordeiro Antas[1]
Este ensaio resulta da minha inserção numa disciplina denominada Teoria da Sexualidade, cujo professor lançou um convite às suas discentes[2] para que escrevessem de modo criativo. Nada de citar os nomes das grandes estudiosas ou curiosas deste universo. Confesso que considerei a ideia maravilhosa. Tudo que eu queria era escrever de modo livre, leve e solto dentro da academia, este mundo tão engessado e engessante, como costumo dizer. Além de masculino e patriarcal, claro.
Ocorre que, ao sentar-me para escrever, para minha surpresa e preocupação, fiquei cá pensando no que e como escreveria. Como iria eu agora “mentir sozinha” (meu professor favorito, dono de um humor singular e, por vezes, quase ácido, dizia-me que eu precisava citar referências no meu trabalho porque eu não deveria/poderia “mentir” sozinha), depois de uma vida (quase) inteira falando em ou com o nome das outras?
Então, a partir da compreensão deste modo pré-determinado para escrever, estendi a mesma lógica para o mundo da tão famigerada sexualidade. Esse universo tão nosso, mas ao mesmo tempo tratado com tanta estranheza, distanciamento, vergonha e, contraditoriamente, com tanta curiosidade e inquietações, das mais variadas naturezas.
Importante esclarecer que, ainda que se trate de um texto considerado criativo onde não faço citações diretas de determinadas autoras, elas o compõem de modo mais ou menos substancial, uma vez que as ideias, discussões e compreensões não brotaram naturalmente na minha mente. Então, as leituras que fiz ao longo da minha formação, as pessoas que ouvi, as atividades das quais participei, fazem parte deste texto e é preciso reconhecer estes lugares.
Dito isso, partamos para discussão objeto deste ensaio. O sexo, ou a sexualidade. Penso eu que o sexo, inclusive aquele feito pelos outros, sempre fora objeto de interesse das mais variadas comunidades. E tudo bem que seja. A história da sexualidade é tão antiga quanto a da humanidade e, a princípio, dependemos do sexo entre homem e mulher para dar continuidade à raça humana (muito embora, com o avanço da medicina e da tecnologia, já dispomos de outros métodos menos tradicionais, digamos assim). Devemos
Considerar que parece haver um conjunto muito vasto e diversificado de possibilidades de vivenciar a sexualidade. Em todas elas, o tempo e lugar parecem definir seu formato, sua experiência e, o que é mais inquietante, parece determinar o tratamento que é dispensado às pessoas conforme essas conceituações ou classificações. Então, isso nos diz de que o olhar para a sexualidade, é um olhar atravessado pelo poder.
Para dar seguimento aos meus pensamentos, considero necessário pontuar, ainda que superficialmente, sobre a diferença entre sexo e gênero, haja vista que são muito comumente confundidos, ou tratados como sinônimos. Sexo refere-se ao aspecto biológico da genitália que define o que se entende como ser homem ou mulher a partir de um pênis ou de uma vagina, respectivamente. Gênero está mais ligado aos papéis que cada sociedade (em determinado tempo e lugar) determina como sendo adequados a cada um dos sexos, como, por exemplo, a mulher deve ser mãe e o homem deve ser o provedor da família (estou sendo bem tradicional para ser didática). Ocorre que entre ser mulher ou ser homem, há uma quase infinidade de modos de existir e vivenciar a sexualidade e o gênero. Pode-se ser homem cis, mulher trans, pessoa intersexo, gênero fluído, travesti, e tantas outras maneiras de se perceber neste universo.
Para além do sexo e do gênero, e não menos importante, tem-se ainda a orientação sexual. Esta não tem relação direta com estes dois substantivos supracitados (ainda que a sociedade a estabeleça de modo quase fatal, como heterossexual), mas passa pelo desejo sexual e afetivo de uma pessoa em relação à outra. De modo que uma pessoa pode ser um homem trans com posicionamento homossexual, bissexual, assexuada, ou heterossexual, ou ainda a combinação de algumas dessas orientações. Uma mulher cis, pode ter desejo afetivo-sexual por outra mulher cis ou por uma mulher trans, e qualquer orientação faria dela uma pessoa em condição homossexual.
Sei que pode parecer complexo para muitas pessoas (e é mesmo), e além de toda essa pluralidade de sexo, gênero e orientação sexual, existem as diversidades em cada uma dessas vivências sexuais, como as práticas e preferências de cada um no íntimo de suas relações, independente da posição ou experiência sexual que tenham. E lembro ainda que essas orientações sexuais, assim como o gênero podem sofrer mudanças significativas ao longo da vida de uma mesma pessoa. Quero ainda destacar que essa complexidade se estende no mundo da biologia e da medicina. A pessoa trans encontra dificuldades quando procura por serviços médicos, uma vez que, comumente, os profissionais de saúde, tentando adequá-los em categorias binárias, negligencia os atendimentos dos quais necessita.
Apesar destas incompreensões, a história nos afirma que a homossexualidade não é fruto da dita modernidade. Nem tão pouco fora algo sempre considerado desviante. Muitos dos grandes imperadores exibiam sua homossexualidade (que nem este nome recebia à época) com uma quase ostentação. Ela era idolatrada. Quiçá, invejada. Em outros calendários, a relação entre homens marcava rituais de aprendizagem, de respeito, de igualde entre si. Todavia, na perspectiva da crença religiosa, ganha uma conotação totalmente diferente. Torna-se agora pecado e dos graves (se é que pode se pensar numa classificação de pecados). Ora, o ato sexual entre pessoas do mesmo sexo não resulta em reprodução da humanidade, não serve à sua perpetuação e esta era (ou deveria ser) a sua finalidade. Então, para garantir que a humanidade seguisse se multiplicando e sem pecar, Sodoma e Gomorra vão lhe servir de exemplo. O século XIX traz as classificações dos comportamentos humanos, e as relações entre pessoas do mesmo sexo, torna-se, então, uma patologia. Deve ser tratada como uma doença, e com os métodos mais contundentes possíveis. O amor ganha sexo: se se é mulher, seu amor deve ser dirigido ao homem. Se se é homem, então, este amor deve ser dedicado a uma mulher. Simples assim. Cartesiano. Lógico. Disciplinante. Porém, não menos opressor.
Bom, mas me parece que a humanidade não pode ser compreendida de modo tão pequeno, simplista e binário (e porque não dizer, medíocre). As suas formas de existência e expressão, incluindo a sexualidade, ainda hoje desafiam as grandes pensadoras da filosofia, da psicologia, da antropologia, da sociologia e até da biologia. E, felizmente, isso ganha voz na década de 1960 com a revolução sexual. A força de potência foi maior que a força de opressão. E ainda bem! Na década de 1980, a homossexualidade sai dos manuais de doença e isso é uma vitória (sim, o direito de amar a quem quiser, tornou-se uma luta ainda não vencida). Caminhou-se a passos largos. Países regularizaram o amor entre pessoas do mesmo sexo. Filmes foram produzidos. E, finalmente, parecia que as pessoas passavam a buscar a compreensão e a cura para aquilo que realmente era preciso, como o câncer, as doenças fatais, a violência.
Mas nos últimos anos, parece que o relógio andou para trás. Pedro e José, mesmo convivendo maritalmente há muito tempo, não são vistos como família. Ana e Josefa da mesma maneira. Se for um amor entre João (que nasceu Maria, sendo então um homem trans) e Antônio, então se perde até a compreensão da história. E eu, de cá da minha finitude e ignorância, gostaria de pensar um pouco sobre nossa dificuldade de evolução, de compreensão, de aceitação das mais variadas formas de ser, de existir, de amar, ou simplesmente, de fazer sexo. Tivemos avanços significativos. Isso é inegável, mas ainda assim e apesar disso, penso que seguimos no mais do mesmo… Ou no menos do mesmo.
Muitas religiões (e aqui não é meu objetivo nominá-las), em suas formas mais ortodoxas, seguem condenando o amor homoafetivo, mesmo que defenda que “devemos amar uns aos outros como eu vos amei”. Não me entendam mal. Não quero entrar no mérito ou no descrédito das religiões. Nem estudo a respeito. Mas o paradoxo me incomoda. A classificação da família adequada e desejável como sendo a heteronormativa, ainda que o homem seja machista e agressor, parece ser mais positiva e/ou socialmente aceitável do que a família homoafetiva, em que ambos se respeitam e se ajudam, além de ofertar amor aos seus descendentes, sejam eles biológicos ou não. Parece que o conceito de família se baseia mais no sexo das cônjuges do que no modo como vivem.
Por vezes, fico a pensar em como somos estranhas (para ser educada) em nos incomodarmos com beijos públicos entre dois homens ou duas mulheres, e em como parecemos ter mais tolerância em ver uma mulher machucada pelo parceiro, ou uma criança dormindo na rua. E isso fere a nossa lógica de humanidade. Isso nos leva a um lugar quase inominável… o lugar da intolerância, da inversão de valores, da hipocrisia, da classificação das pessoas conforme suas vivências sexuais. O lugar do descrédito, da valorização do que é considerado comum em detrimento da culpabilização daquele que só quer amar a quem lhe der vontade.
Antes que alguém diga que é apenas uma opinião. Permita-me dizer que não concordo. Eu opino sobre gosto musical, comida preferida, ou o que se veste. Isso não se desdobra em ninguém, nem de modo bom nem ruim. Mas a homofobia é antiética. Ela fere o princípio da não maleficência porque ela faz mal à pessoa homossexual. Ela exclui, humilha, diminui. Ela mata. Ela classifica as pessoas em dignas e não dignas. Mesmo a homossexualidade não ferindo o princípio da não maleficência (não fazer mal a ninguém) e reforçando o da beneficência (de fazer bem a alguém), as pessoas a definem de modo quase conclusivo (ou totalmente) como ele é gay ou ela é lésbica, e lembremos que aqui esse substantivo tem uma conotação de adjetivo pejorativo.
Há uma curiosidade sobre o modo como as pessoas homossexuais fazem sexo. Fico pensando se é só ignorância, fetiche ou apenas falta de assunto. Como uma pessoa heterossexual que tenho sido até aqui, ninguém vive me perguntando o que faço ou não com meu esposo. Nem tão pouco as pessoas heterossexuais ficam se justificando como realizam seus coitos – a não ser aqueles homens (geralmente o são) mais inseguros e indiscretos que necessitam narrar suas peripécias sexuais como verdadeiras vitórias (mesmo que sejam invenções alimentadas por sua incapacidade). Mas, este é outro assunto que talvez a Psicanálise possa contribuir mais. Por hora, me retenho à hipocrisia do mundo patriarcal.
Então, eu fico cá pensando porque a homossexualidade incomoda tanto. Obviamente sabemos que há diversas abordagens ou explicações, que passam pelo cunho religioso, antropológico, patriarcal, biológico ou psicanalítico, mas eu não quero me ater a nenhum deles. Eu quero mesmo é cutucar aquelas possibilidades que remetem ao nossos “eus” mais escondidos. Dirão: “Me incomodo porque acho errado. Por que não é de deus. Porque a natureza não fez assim” (bom a natureza não fez tanta coisa e o homem não respeita isso) Perguntarei: E em que isso prejudica alguém? Em que fere o princípio ético da não maleficência? Por que não te incomodas tanto ao veres uma mulher espancada pelo parceiro? Uma criança abandonada à própria sorte? Uma adolescente estuprada pelo tio? Isso sim, prejudica alguém. Isso traz dores e traumas…
A hipocrisia parece fazer parte do jeito de ser de muitas pessoas, e digo a partir da observação de como criticamos ou aceitamos certos padrões de comportamento. Por exemplo, há muito tempo me chama a atenção de como o comportamento do homem heterossexual é “homossexualizado”. O homem heterossexual adora estar na companhia de outros homens. Seja no jogo, no bar, na conversa, na amizade. O outro homem é objeto de deposição de afeto (aprendi na referida disciplina que isso se chama homossociabilidade). A mulher é quase para reprodução e, em alguns casos, para o prazer sexual também. E fico a matutar o que há por trás desses sentimentos. Quem se arrodeia de mulheres e adora sua companhia, são os homens homossexuais. E não consigo não considerar isso tudo minimamente intrigante, para não dizer, sugestivo. Mas se o homem não mantém relação sexual com outro homem, então, está tudo bem, mesmo que a relação seja permeada por sentimentos outros até mais íntimos que a própria relação sexual.
Devo ainda lembrar que a homossociabilidade tem seu quê de coerção pela sociedade machista e isso traz sofrimento a alguns homens que são ensinados (ou deveria dizer “desensinados”?) a serem fortes, não falar de seus sentimentos, não chorarem, e não perderem. Felizmente, há movimentos e homens que têm se posicionado contra isso.
Ainda seguindo pela estrada das incoerências, penso que engatamos uma marcha a ré com as tais “festas de revelação” (casais que promovem comemoração para que lhes seja revelado, por alguém de sua confiança, o sexo da bebê que está sendo gestada). Tudo azul e rosa (não sei por quem e nem quando isso foi inventado) como pano de fundo de uma forte expectativa sobre o que será. Em primeiro lugar, do ponto de vista biológico há cinquenta por cento de chance de ser menino ou menina (salvo casos raros de intersexo ou alguma outra condição). Segundo, o que muda em que? Para que ou para quem? Mudam as projeções das mães, dos pais e dos familiares sobre aquilo que pretendem à sua herdeira. Podem nascer sentimentos de rejeição porque a pequena não poderá se tornar aquilo que se espera dela, a partir do sexo que carrega. E eu sigo sem entender muita coisa sobre a importância disso tudo… mas, tudo bem. A reflexão é necessária. E este texto faz parte dela.
Eu vivi o oposto do mencionado “chá de revelação”. Minha primeira filha tem 12 anos. Quando engravidei dela, de modo planejado, desejado, optei, junto ao meu esposo, em não sabermos o seu sexo durante a gestação. Queria poupar-lhe em seus primeiros nove meses de vida dessa lógica binária, sexista e profetizadora a partir apenas do fato de ela ter um pênis ou uma vagina. Foi uma experiência singular. Eu diria até divertida. Muitas perguntavam: “Qual o sexo?” Meu esposo por vezes respondia: “Sei lá. Quando crescer, ele ou ela decide”. De outra vez, diziam: “Tomara que seja menino para namorar minha filha”. Respondíamos: Mas se for menina também pode. Outras ainda, curiosas, falavam: “Mas como vocês conversam com este bebê sem saber o sexo?” Respondíamos que não tínhamos problemas em falar com estranhas. Sinais da cruz eram feitas em nossa frente. Parecia que cometíamos o pecado dos infernos. E, devo dizer, também não dei lucros à indústria sexista que vende vestidos rosas e macacões azuis.
E é com o intuito de quebrar ou não reproduzir esta lógica tão estreita e por vezes opressora, que tento educar minhas filhas de modo a ensiná-las a pensar e agir de modo mais livre, ético, responsável e não preconceituoso. Aos seus olhos, ainda de meninas, tento fazê-las entender que há muitas formas de ser e de estar neste mundo e que, no que tange à nossa sexualidade e orientação sexual, essas formas se desdobram de modo quase impossível de se classificar (e segue o questionamento sobre a necessidade de se classificar pessoas a partir dos seus comportamentos sexuais). E me vejo otimista quanto ao resultado desse movimento. Não só por minhas filhas, mas por tantas outras pessoas que, de modo mais espontâneo ou ortodoxo, vão se permitindo pensar em seus semelhantes para além de todo esse sistema classificatório e binário. De modo ainda mais positivo, muitas vão se questionando sobre a veracidade ou necessidade de se dar nomes, conceitos e classes a todos esses modos de existência, sobretudo, quando esse processo discrimina, humilha e afasta.
Vejo janelas abertas para um mundo com preocupações mais reais, mais necessárias e menos patologizantes. Um mundo onde o outro pode ser rejeitado se fizer mal para alguma pessoa, e onde esse mal não é compreendido como o amor livre entre pessoas de boa vontade. E espero, realmente, que minhas filhas, caso me deem netas, não precisem conversar com elas sobre essas mediocridades do mundo que conhecemos, pois, isso já não fará parte do processo educacional, social, nem tão pouco religioso, ao qual elas serão submetidas. Neste mundo que observo, as pessoas gozam de liberdade para amar a quem quiser, e pecadoras, estranhas ou problemáticas, são aquelas que isso não compreendem.
[1] Aluna do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UFPB. [email protected]
[2] Esclareço que, seguindo a sugestão de um amigo, optei por adotar o gênero feminino ao longo de todo este texto como forma de reconhecer e evitar o hábito secular e tão esmagador da adoção do gênero masculino, mesmo quando o grande coletivo fosse de mulheres. Como mãe, irmã e amiga de mulheres, não quero me furtar de lembrá-las neste texto, assim como de todas as outras que compõem a minha vida, bem como aquelas que foram e ainda o são silenciadas pelo patriarcado.