D’Angelles Coutinho Vieira[1]
Crescemos numa sociedade em que os banheiros públicos são divididos entre “masculinos” e “femininos”. Essa divisão é repetida com uma frequência tão alta que se torna realmente natural para os indivíduos, estruturada nos seus repertórios de ação. Ora, é óbvio que os banheiros precisam ser divididos entre “masculinos” e “femininos”, pode pensar alguém, mas porque e quando ela começou? Assim como ocorre com o conceito de família seria possível localizar um surgimento temporal para a divisão dos banheiros, mas ao argumento sequer interessa saber uma data precisa para tal, basta sabermos que o surgimento implica na ideia de construção. Se essa divisão foi construída, ela não existia no período anterior a sua construção. É essa ideia desnaturalizante que está presente na investigação de Nietszche em relação à moral, na investigação de Judith Butler em relação à gênero e em Foucault para compreensão dos dispositivos de controle dos corpos.
Pelo que observo nos discursos, o fundamento para essa divisão recai numa espécie de lenda. Um homem vai entrar no banheiro “feminino” e irá coagir a mulher em qualquer momento do dia, e ele sairá completamente ileso. Para muitos a ideia de penas mais duras pode incorrer numa menor incidência de crimes, mas neste caso não parece importar muito a hora ou lugar, sendo em plena luz do dia e num lugar movimentado o homem pré-infrator irá se dirigir ao banheiro “feminino” para cometer o crime de estupro. Todos os olhares se voltam para essa cena imaginária e costuma-se ignorar que a maioria dos casos de estupro no Brasil ocorre dentro do ambiente familiar, e isso faz todo o sentido. Mas, voltando-se para nossa perspectiva geneaológica e buscando olhar o passado, na época da revolução industrial sequer existiam banheiros. Havia um espaço fora das residências reservados para isso e que eram utilizados por várias famílias, não havia quatro paredes nem vaso sanitário. Operários de ambos os sexos se reuniam nesses espaços dedicados a atender as necessidades fisiológicas, inclusive na mesma hora, lado a lado. Só resta o entendimento primeiro de que a divisão dos banheiros não é algo natural e a razão de sê-lo não parece bem fundamentada. Isso porque estupro não é algo que ocorre somente entre homens e mulheres, e muito menos precisa envolver o ato de penetração (artigo 213 do código penal).
Pensando nas estratégias para combater o problema do estupro, discute-se cada vez mais a necessidade de uma educação sexual. É necessário ensinar as nossas crianças sobre seus corpos e os limites que devem existir entre eles, mesmo se tratando dos pais e responsáveis, mas tudo isso é encarado na grande falácia do espantalho[1] de que vão ensinar as crianças a fazerem sexo. Há uma grande contradição, pois o desejo de combater o estupro deveria envolver ações em todos os espaços, não apenas nos banheiros. Talvez a população realmente acredite que não existe abuso dentro do meio familiar, ou que existe muito pouco, possivelmente para proteger a imagem de que a família é uma instituição divina.
Na prática o que essa divisão só consegue instaurar uma exclusão perante as pessoas trans, seja perante a mulher trans que é vista como uma espécie de pênis ambulante, seja perante homens trans que estão em processo de transição e ainda não se sentem bem (ou menos mal) nos banheiros “masculinos”, indo então ao “feminino”. Partindo da lenda do homem estuprador que irá irromper o banheiro “feminino” a qualquer momento, as pessoas imaginam que algum homem simplesmente vai desafiar as normas da sociedade colocando um vestido e alguma maquiagem aleatória para poder entrar no banheiro “feminino” e poder estuprar alguém. É realmente um preço bem alto a se pagar, mais fácil alguém exercer autoridade enquanto pai ou tio e aliciar uma familiar próxima, se comportar de maneira estranha e exigir silêncio de uma pessoa que não está entendendo bem a situação. Nota-se o quanto que a sociedade ainda precisa aprender sobre gênero, com certa frequência vejo comentários como “agora sou um dinossauro, me respeitem ou estão praticando dinossaurofobia”, como se não houvesse nenhuma história por trás daquele indivíduo que nasceu num corpo e não se identifica com o gênero atrelado a ele pela sociedade, como se gênero fosse algo aleatório e simplesmente alguém pudesse “virar” outra pessoa e depois “desvirar” para obter determinadas vantagens na sociedade.
Já fui alvo dessa exclusão, fui expulsa de um banheiro “feminino” no Manaíra Shopping há quatro anos[2]. Seria fácil, na mente de alguns, simplesmente usar o “masculino” e pronto, como se eu não fosse ser alvo de piadas e brincadeiras devido as roupas que usava, como se não houvesse humilhação em ter sua identidade negada. Se é simples assim, proponho um pequeno exercício: se você é um homem cisgênero experimente sair com uma saia e vá ao seu local de trabalho ou ao centro da cidade; Se você é mulher cisgênero, deixe todos os seus pelos crescerem ou raspe a cabeça e saia de casa também. Garanto que não será algo tão simples assim.
Notas
[1] A falácia do espantalho é um argumento falso que se baseia na interpretação errada de A sobre o argumento lançado por B, mas que é lançada como se fosse o argumento de B. Por exemplo, alguém fala que é necessário falar sobre as diferenças de gênero e sexualidade para as pessoas nas escolas e a outra diz “Querem transformar nossas crianças em gays e lésbicas!”.
[2] Quatro anos depois, revisitei o banheiro do Manaíra Shopping, o mesmo em que fui expulsa. O nervosismo foi terrível, mas entrar lá era um verdadeiro ato político, falar disso também. Escondi a foto no link abaixo porque quero que o texto seja lido em primeiro lugar https://bit.ly/2Xrtk5N
[1] Alune do Programa de Pós Graduação em Sociologia da UFPB. [email protected]